A vingativa Diane Kruger é uma das favoritas ao prémio de interpretação em Cannes
Quatro dias depois do ataque terrorista em Manchester, Cannes recebe um abalo semelhante com o filme do turco Fatih Akin, In the Fade. As consequências foram perturbadoras, mas há quem defenda a Palma de Ouro, bem como quem demonize o filme. Agitam-se as águas em Cannes, poucas horas depois do francês François Ozon nos ter oferecido um provocador presente armadilhado de thriller erótico em L’Amant Double. Foi também a vez de passar A Fábrica de Nada, provavelmente o melhor filme que vimos em Cannes.
Para muitos, Cannes recebeu um novo candidato francês à Palma de Ouro com o estrondo de uma bomba. Até porque é isso que sucede no filme In The Fade (Aus Dem Nichts, no original alemão), seguramente o filme mais perturbador que Cannes viu este ano. E depois de assentar a poeira sobre a explosão que mata o marido e filho da personagem de Diane Kruger ficar no ar a pergunta: o que faria se os seus entes queridos tivessem sido vítimas de um atentado terrorista? Pois são precisamente esses sentimentos viscerais que são despoletados neste filme que tem a coragem de colocar uma alemã (Diane Kruger) no papel de vítima que decide devolver a reciprocidade da Lei de Talião aos presumíveis autores do atentado que levou a vida do seu marido turco e do filho de seis anos. Eventualmente Kruger opta por uma versão semelhante à de Uma Thurman em Kill Bill. Só que não com um sabre, mas com uma bomba de pregos semelhante à que levou o marido e o filho.
O problema é que apesar deste filme aflorar a questão do extremismo nazi na Alemanha, em particular com os assassínios do grupo neonazi NSU, em 2011, será inevitável estender a questão a todo o extremismo e procurar as raízes dos gestos radicais de martírio. Como os de Manchester? É este o paradoxo insolúvel com que Akim terá de lidar.
O filme divide-se em três partes – como uma tragédia grega se tratasse? – e até em três géneros diferentes, como que a procurar uma lógica de equação, começando por A Família, que nos mostra a ligação desta alemã a casar-se com um turco tatuado (Numan Acar) ainda antes de sair da prisão, por tráfico de droga, evidenciando uma excelente Kruger a recuperar o seu alemão de origem, provavelmente na short list para o prémio de interpretação feminino (que não lhe deverá escapar), pois trata-se provavelmente do seu melhor papel de sempre; evolui depois para a dor da perda e o processo judicial que procura emular os eventos de 2011, com Justiça; por fim, O Mar, na procura de uma solução para a insatisfação diante o desfecho judicial, sempre servida pela excelente trabalho de câmara de Rainer Klausmann.
Parte drama familiar, parte filme de barra de tribunal, parte revenge movie, In the Fade acaba até por seguir uma via algo mainstream, não ao ponto de John Wick, claro, mas também não tanto a versão A Desaparecida, de John Ford, porventura o melhor exemplo da história do cinema. Até porque o tal desenho esquemático inicial acaba por afunilar num leque demasiado limitado de desfecho. Ou seja, cumprirá ou não a personagem de Kruger a Lei de Talião? Ainda assim, os jornalistas presentes na matinal sessão de imprensa não pouparam elogios. Mas houve também quem demonizasse o filme. Mas a curiosidade fica ao rubro, o que ajudará as suas vendas.
Vimos ainda L’Amant Double, a incursão do enfant terrible François Ozon a penetrar uma vez mais no território de Hitchcock, para nos dar uma perversa visão de pulsação erótica, temperada com intrigantes sessões de terapia e sonhos. A bela Marine Vacht regressa a Ozon depois de Jovem e Bela (2013), para um exercício que apelidaríamos de absorvente sedução. Isto assim que Chloé, assim se chama a sua personagem, procura lidar com os seus problemas psicológicos e se entrega e corpo e alma ao psicanalista servido com segurança por Jérémie Renier. Só que no meio desta tórrida sedução, o ciúme instala-se quando percebe que existe a possibilidade do seu amante ter um irmão gémeo. Daqui para a frente, começa então o jogo entre Ozon e o espetador, uma espécie de gato e rato (e, sim, existem vários gatos no filme), num crescendo que celebra a afinidade com De Palma.
No entanto, a provocação suprema de Ozon pode até cristalizar-se no racord inicial em que o interior da vagina de Chloé é fundido no seu olhar verde. Assim mesmo. Um único do festival que arrancou da plateia um rasgado aplauso em ritmo de gargalhada. É assim Ozon. Provocador e rigoroso em doses iguais.
Por fim, mas decididamente não em último, o filme do português Pedro Pinto, A Fábrica de Nada, exibido numa sessão especial da Quinzena dos Realizadores, a ilustrar a habilidosa solução social e empresarial para uma fábrica que é tomada em autogestão como forma dos trabalhadores assegurarem os seus postos de trabalho e o funcionamento da mesma.
O que temos é uma pequena preciosidade que se desenrola ao longo de três horas que se vêm com gosto. Num percurso em que ficamos na dúvida em saber se o realizador Pedro Pinho optara por uma vertente documental ou se por uma ficção acompanhada por uma câmara. É claro, a ideia original partiu da peça de Judith Hertzberg e de Jorge Silva Melo, que também encenaria a peça. O filme com guião colaborado entre Tiago Hespanha, Luisa Homem, Leonor Noivo e Pedro Pinho, haveria de ser concretizado nos belíssimos cenários naturais de Sta Iria da Azóia, talvez o melhor cenário natural lusitano, entre o campo das lezírias junto ao Tejo, com os cenários industriais do porto e o skyline da modernidade ao fundo. Bravo.
Artigo escrito por Paulo Portugal, publicado no nosso parceiro Insider Film