Inferno: primeira paragem d’ O Bando no trilho da Divina Comédia
Para assistirmos ao inferno, tivemos de passar por ele. Da bilheteira indicaram-nos que a porta de entrada na sala Garret, do Teatro Nacional D. Maria II, não seria a tradicional. ‘Sai, contorna o edifício, e entra pela porta dos artistas’. Eram quase 19h, o dia ainda bastante quente – um inferno. Da porta dos artistas entramos directamente para o palco. Contornamos uma estrutura de estacas metálicas, irregulares, que formam círculos concêntricos. Somos obrigados a circular em redor do cenário. Percebe-se que a geografia interna do palco é complexa, uma espécie de labirinto que dá uma certa vontade de explorar, em comprimento e altura.
Quando nos sentamos na plateia, percebemos que a tela de fundo mostra imagens de pessoas a passarem no Rossio. Alguns também espectadores, a contornar o edifício. Fomos filmados enquanto nos deslocávamos, projectados no palco, projectados no inferno. O tempo também nos revela que determinadas pessoas, em invés de sentarem, continuam a andar em círculos em redor da estrutura: os actores, disfarçados de público. São como nós. Vamos estar todos ali.
A dramaturgia partiu da primeira parte do clássico ‘Divina Comédia‘, de Dante Alighieri. Segundo os seus criadores, a peça acabou por adoptar metade do texto original, num cruzamento de diferentes traduções, que mantém grande parte da densidade literária original. O texto motiva um espectáculo que se desdobra numa lógica de percurso espiritual: a alma que vagueia, em interacção com o mundo dos mortos, sentindo pavores e incapacidades, curiosidade e ambição, e o desejo de querer viver.
‘Inferno‘ é o primeiro capítulo de um conjunto de espectáculos que pretende reconstituír todo o clássico de Dante. ‘Purgatório‘ está previsto para 2019, e o ‘Paraíso‘ para 2021. O processo criativo, com encenação de João Brites e apoio de Rui Francisco na dramatografia, conta com um elenco de 21 actores em cena. Determinadas personagens surgem com um duplo, um irmão gémeo, uma sombra de si próprios: é o caso de Dante, de Virgílio e de Beatriz. Também as fúrias e os diabos aparecem como personagens colectivas, espelhos desdobrados de uma realidade negra e aflitiva.
A crição é do Teatro o Bando, com coprodução dos teatros nacionais D. Maria II e São João, assim como da C. M. Coimbra e do Convento de São Francisco. No decorrer do processo criativo, chegam a passar temporadas na sede da companhia, nos confins na Serra da Arrábida. Lá, em comunhão com a natureza, exploram o lado conceptual que vai guiar as linhas orientadoras do projecto, ao nível do trabalho de actores e da peça como um todo.
Há intensidade do princípio ao fim: emocional, física e vocal. Personagens a subir e descer patamares, actores dependurados em barras metálicas, elevações constantes das vozes. A música e a cacofonia contribuem recorrentemente para o ambiente claustrofóbico em crescendo, num espectáculo que acaba por se estender para lá do limite confortável: também não é que fosse suposto ser um cadeirão para nos recostarmos. O canto lírico, que surge pontualmente ao longo da peça com um propósito de acentuação da intensidade, também cumpre o seu papel, ao destabilizar os ouvidos de quem assiste. Imprivisibilidade e aflição; raros momentos de harmonia, porque o inferno é isso mesmo.
Um prólogo que deixa em aberto qual a forma que irá adoptar nos capítulos seguintes. Aguardamos com curiosidade que estratégias serão utilizadas no apaziguar progressivo da narrativa da Divina Comédia, até ao êxtase glorioso que está nos antípodas (e tão próximo) do de ‘Inferno‘. Uma densa e exigente criação d’ O Bando, que pode ser descoberta no TNDM II até ao próximo domingo, dia 4 de Junho.
Fotografias de Filipe Ferreira