O “America First” no Afeganistão
A poucas semanas do 20º ano desde o ataque terrorista do 11 de setembro, os acontecimentos dos últimos dias no Afeganistão fazem-me regressar à data atempadamente. Onde estava, os 17 anos que tinha na altura e os que se emocionavam comigo perante as imagens da barbárie que perduraria nas nossas cabeças. Dos saltos de desespero de quem já nada podia fazer do 30º não sei quantos andar das torres gémeas, o filme de terror real mudou consciências e moldou muito do que interessava da geração a que pertenço, nascida e criada em países ocidentais e provavelmente, com demasiadas garantias de segurança até então. Os massacres a países noutros continentes (um ou outro até perpetuado pelos americanos), a própria história de guerra da Europa vivida pelos nossos bisavós, avós e o terrorismo em locais que quase só estivéramos de passagem, deixou de ser um deserto distante. E tudo acontecera sob ataque à cidade da liberdade, num país que julgava-se representar uma certa junção de povos e até então garantia uma falsa sensação de segurança. Longe de se imaginar qualquer cenário de terrorismo apocalítico aqui na Europa ou ali nos EUA. Outros seguiram-se, mas sem a mesma dimensão e com um controlo cada vez maior.
Do preço da vingança do 11 de setembro, existiram alguns erros por parte dos governos americanos. O maior, a invasão do Iraque com base numa falsa premissa e sem qualquer efeito prático no imediato na War on Terror decretada por Bush. Ou à posteriori, na saída desastrosa daquele país, que foi em tudo semelhante a esta no Afeganistão, só que sem as consequências regionais e longe de deixar talibãs extremistas no poder. É na invasão legítima e bem-sucedida do Afeganistão há 20 anos para capturar Bin Laden e desmantelar algumas das células principais da Al Qaeda que a comparação com Saigão em 1975 se torna preguiçosa. Do ponto de vista simbólico e de algumas coincidências, será entendível, mas apenas por aí. Enquanto o Vietname foi uma guerra escolhida pelos americanos, porventura, mais uma baseada em falsas premissas, o Afeganistão foi a necessidade e resposta a um ataque bárbaro no seu território. No tempo atual em que se tende para as visões a preto ou branco, em que escasseia o contexto concreto e a memória, olhar para as relações internacionais da mesma forma, é passar ao lado do relevante.
Alguém imagina o que teria sido do mundo Ocidental há vinte anos e depois do 11 de setembro, se as bases de organizações terroristas em locais como Cabul estivessem sob o poder dos talibãs? É preciso algum pudor quando se afirma agora levianamente que foram vinte anos perdidos no Afeganistão e se tem semelhante ignorância quanto aos passos dados no combate ao terrorismo e extremismo islâmico, globalmente.
Esperemos que o desenlace e a ausência americana naquele território, não venha a ser mais uma prova disso. Como tudo indica.
Desde a falhada primavera árabe e o tempo em que Obama era presidente que os americanos procuram sair do Afeganistão. Além de ser o país onde mais tempo tiveram em guerra, a estratégia da política de retraimento global dos EUA tem mais de uma década. Poucos assuntos unem democratas e republicanos como a concentração exclusiva na ameaça chinesa, o facto da condução do mundo já não ser unipolar e o desejo de deixar de ser “polícias” em todo e qualquer lugar. Raras coisas dizem tanto ao eleitor médio americano como ter um familiar a querer ir para uma guerra nuns confins quaisquer e onde não vislumbram nada de sólido a ficar por lá. Ou de uma parte dos seus impostos que consideram desbaratados há anos sem fim numa causa que ainda menos lhes diz. O medo da ameaça terrorista em solo nacional deixou de o ser e são muito mais os crimes perpetuados pelos próprios americanos com armas nos diferentes Estados. Tudo isso, com a perspetiva destes ganhos eleitorais imediatos e transversais, foi utilizado por Trump para recriar o America First e forjar acordos fracos que até forças extremistas englobaram. A administração Biden, pelas mesmas razões e contexto, cimentou-os. O cansaço do tempo naquele território e a pressão venceu a racionalidade. Seja como for, a retirada do Afeganistão significa em última instância a nova queda de um certo ideal em regiões, muito mais do que países, que possam querer emanar alguma da estrutura e funcionamento democrático, quando estão longe de partilhar a mesma história, valores dos americanos e do Ocidente. Quando tudo indica que o Afeganistão esteve longe de colapsar para as forças dos talibãs com um banho de sangue. Quando os seus guerrilheiros são da mesma etnia do presidente e já há relatórios que apontam para um acordo secreto entre membros do governo deposto como Ashraf Ghani Ahmadzai, Hamid Karzai, Gulbedin Hekmatyar e os talibãs que pertencem às mesmas etnias. Quando a simpatia que os une e a corrupção levaram a melhor, foi a comunidade internacional que foi enganada por completo no tempo e no modo. Não foram só os americanos.
A visão imediata destronou aquela dos que acreditam que uma demissão externa dos EUA neste mundo é meio caminho andado para voltarmos a 2001, com outras e piores consequências para o Ocidente. Para não falar, naquilo que fica para o povo árabe, as mulheres, crianças e os atropelos aos direitos humanos que já vamos conhecendo.
Inevitavelmente, o mundo está hoje mais perigoso depois disto e a estratégia de retraimento desta e das últimas administrações a culminar no America First é um perigo para todos. As imagens dos afegãos agarrados aos aviões americanos não enganam e a União Europeia não existe por lá. Até quando?