Os cinquenta anos de Sgt. Pepper (que, na verdade, são setenta)
Podia ter sido em qualquer dia do ano, mas foi no dia da criança: o que faz todo o sentido, e sentido nenhum. Sgt. Pepper’s Lonely Hearts Club Band é um álbum que aparenta ser pueril, mas é maduro. Parece inocente, mas é visionário. Por isso, há algum sentido de justiça no facto do seu lançamento ter sido feito a 1 de junho de 1967, dia da criança. Esta quinta-feira, faz 50 anos.
O oitavo álbum de estúdio dos Beatles, que surge na ressaca de tours ruidosas e desgastantes, apresenta alguns clássicos da banda, como With A Little Help From My Friends e Lucy In The Sky With Diamonds. Curioso é saber que, de fora, ficaram as emblemáticas Strawberry Fields Forever e Penny Lane, que foram lançadas em single, no mesmo ano. Uma questão levantada foi o tempo que o álbum demorou a ser gravado — mais de 400 horas —, em comparação com as meras 12 que foram precisas para gravar a estreia dos fab four ao mundo: Please Please Me (1963).
Apenas quatro anos se passaram entre o primeiro e o oitavo álbuns, mas, no universo de Beatles, quatro anos foram uma vida. Em agosto de 66, três meses antes da entrada em estúdio para a gravação de Sgt. Pepper, George, John, Paul e Ringo anunciaram a reforma dos palcos, asfixiados pela “beatlemania”. George Harrison tentara, inclusive, abandonar a banda e só ficou com a promessa de não haver mais espetáculos (a exceção foi o derradeiro concerto, no telhado da Apple, em Londres, três anos mais tarde). Foi, talvez, por isso, que, na antevisão de um futuro sem espetáculos e com a imensidão da liberdade criativa que isso implicava, os 39 minutos e 42 segundos de Sgt. Pepper puderam nascer.
Integrando o ficcionado mundo colorido, circense e militar de Sgt. Pepper, também a imagem do álbum se viria a tornar emblemática. Foi um esboço de McCartney que levou à idílica capa de celebridades – 75 figuras públicas em cartão, 9 estátuas de cera e quatro Beatles.
O sarapintado de psicadelismo, os fatos acetinados com um certo aspeto cómico e os bigodes virados para baixo, como sorrisos virados ao contrário, convidam-nos para a faixa de abertura, homónima do álbum. Ouve-se a audiência, a orquestra afina os instrumentos e McCartney, que terá tido a ideia de criar a banda alter ego, anuncia a banda fictícia, que vai entrar em palco. With A Little Help From My Friends, na voz de Ringo, é, em simultâneo, uma ideia alegre e um pedido amargo: “Do you need anybody/ I need somebody to love/ Could it be anybody/ I want somebody to love”. O álbum salta logo para a faixa (provavelmente) mais emblemática do álbum. A que escorre viscosamente e nos desenha mundos na viseira. É marmelade skies e caledoscope eyes.
O nascimento de Sgt. Pepper seguiu os passos de Revolver (1966) na crescente complexidade de produção musical — o álbum não seria tocado ao vivo, pelo que a margem de experimentação era muito maior. Os quatro —George Harrison, John Lennon, Paul McCartney e Billy Shears (“alter ego” de Ringo neste álbum) — recorreram a uma panóplia de instrumentos e técnicas que encheram os estúdios de Abbey Road durante cinco meses.
Uma orquestra, instrumentos tradicionais indianos, cordas, clarinetes e saxofones. A multiplicidade de formas que o álbum toma é uma verdadeira surpresa. Fixing a Hole traz-nos um cravo. She’s Leaving Home é um lamento. No final de Being For the Benefit of Mr Kite, sentimo-nos um acordeão a andar sobre um metalofone. Within You Without You vive da espiritualidade indiana de George. When I’m Sixty-Four traz clarinetes. Por fim, Sgt. Pepper’s Lonely Hearts Club Band (reprise) seria a despedida da banda, recuperando a sonoridade da faixa de abertura, com mais rapidez e intensidade. Mas o oitavo álbum do quarteto de Liverpool não se ficou por aí.
A Day In The Life fecha o álbum num tom intemporal, de quem não nasceu nos anos 60 nem nos dias de hoje. Uma canção de quem tem saudade e, simultaneamente, de quem se conforma.
“I read the news today oh boy
About a lucky man who made the grave
And though the news was rather sad
Well I just had to laugh
I saw the photograph”
A faixa acaba num megalómano esforço de 40 instrumentistas (McCartney, inicialmente, queria 90), que foram da nota mais grave à mais aguda, até desembocar num dos mais famosos acordes da história da música. Um Mi maior feito em simultâneo, com três pianos e um harmónio, que se prolonga (quase) infinitamente. E, assim, acaba o álbum com meio século.
Os primeiros versos que se ouvem no emblemático álbum ditam a (secreta) verdade: “It was twenty years ago today,/ Sgt. Pepper taught the band to play”. Hoje, Sgt. Pepper não tem só 50 anos, porque já nascera com 20. Ou pelo menos, acho que um álbum como este nos permitiria acreditar que sim.