Nada pertence ao passado: reflexão sobre o homem irreal de Proust
Da leitura dos volumes de Em Busca do Tempo Perdido, de Marcel Proust (1871–1922), sobressai a sensação de que só obtemos aquilo que queremos demasiado tarde, quando os desejos se esfumaram ou a idade avançada e as recordações de experiências fracassadas nos coíbem de extrair prazer ou consolo daquilo que almejávamos alcançar. O emprego ideal, o reconhecimento artístico e a namorada deslumbrante tardam ou nunca chegam e, com o avançar dos anos, a esperança cede ao azedume, a ambição de conquistar planetas, de abraçar o mundo inteiro, de ser toda a gente numa só vida, dilui-se em rugas e cabelos brancos. Ficamo-nos por miragens, restos de utopias fundidas com lágrimas, côdeas que sabem cada vez menos a futuro. Procuramos os anos perdidos, tentamos redescobrir oportunidades desperdiçadas de ser feliz, ressentidos e distantes da alegria.
A obra de Proust alerta-nos para uma dimensão do sofrimento que tem que ver com a própria essência humana — uma essência naturalmente insatisfeita, desencontrada com o tempo e com o espaço, moldada por ideais de perfeição avessos à felicidade. Os lugares que pretendemos visitar são apenas apetecíveis antes de os visitarmos. O êxtase proporcionado pela antecipação de um encontro amoroso dilui-se na desilusão de nada ser tão perfeito como na imaginação. Por exemplo, à distância, Albertine surge bela e radiante, e certos traços psicológicos que desagradam a um rapaz sensível como Marcel são positivamente descritos, mas na presença da menina ele é incapaz de desfrutar, desgostam-lhe os seus palavrões, a falta de cultura, e o que passava por extroversão vira vulgaridade. Fenómeno semelhante ocorre com Charles Swann: em certos momentos, vê Odette de Crécy como ela realmente é, banal, promíscua e infiel, mas noutras alturas, especialmente quando não está com ela, idealiza-a, arde de ciúme pensando que a tem de possuir, persegue-a de madrugada, passa noites à sua porta, oscilando entre sentimentos de ódio e paixão. Conquanto se convença de que não a ama, que não consegue adorar uma mulher cujos modos e comportamentos o embaraçam, Swann casa-se com Odette e consome-se durante anos num despeito que lhe subtrai vaidade e prestígio social.
A ilação a tirar é que, apesar de constituir um dos focos das nossas vidas, o amor ideal é impossível de concretizar, não só porque duas pessoas não pensam e sentem da mesma maneira, mas porque nos guiamos por fantasias, porque almejamos mergulhar num amor irreprochável, inexistente no mundo real. Swann e Marcel são uma espécie de criatura definida por André Aciman, em Homo Irrealis (2021), como o homem irreal. São homens incapazes de viver no tempo presente, homens que não desfrutam da cidade em que vivem por não haver uma cidade igual à que imaginaram, que passam o tempo fabricando cenários alternativos, situações que poderiam ter acontecido de outra maneira. No fundo, homens que poderiam aplicar a expressão “could have been” a tudo. Homens que poderiam ter amado Vera em vez de Raquel, que poderiam ter vivido em Veneza em vez de São Paulo. O homo irrealis, figura incoerente, tem saudades de um passado que não é bem um passado, mas um futuro imaginário, muda-se para Nova Iorque pensando que esta é a cidade perfeita e, depois de lá estar, percebe que o seu lugar não é ali, que talvez o seu lugar não seja em lado algum que transcenda o seu interior. A procura nunca cessa pois o que o anima é a procura em si. Assim entendemos que, na obra de Proust, muito mais importantes do que os beijos, os encontros amorosos, os jantares ou os convívios sociais são os momentos que os precedem e os sucedem. Mais relevantes do que as descrições de eventos são as centenas e centenas de páginas em que, sozinho no seu quarto, Marcel cogita sobre momentos do passado ou antecipa tristezas e alegrias futuras. O que parece ter real importância em Proust é o momento de pensar, de antecipar situações ou, por outras palavras, os modos como as personagens fabricam conjunturas ilusórias, como se imaginam dando abraços quiméricos, como se entregam a sonhos que ainda não foram corrompidos pela realidade.
Proust parece dizer-nos que nada pertence realmente ao passado e que, ao mesmo tempo, tudo é passado por ser sempre tarde, por não sabermos acatar a imperfeição alheia. No último volume de Em Busca do Tempo Perdido, publicado em 1927, cerca de cinco anos depois da morte de Marcel Proust, o narrador e protagonista, também chamado Marcel, regressa à cidade onde passou grande parte da infância e da juventude, onde se apaixonou e desapaixonou por Gilberte, a filha do Senhor Swann, onde frequentou, enlevado de admiração, as festas organizadas pela Madame de Guermantes, uma das suas paixões platónicas. Mas Paris não é a mesma cidade da infância, a magia deu lugar à escuridão. A Primeira Guerra Mundial destruiu prédios, acabou com a abastança e tornou a população mais pobre. Anteriormente, as senhoras pertencentes à alta sociedade eram comparadas a pinturas clássicas e despertavam em Marcel desejo e admiração, mas agora que perderam a beleza para a velhice, suscitam piedade e apatia. Robert de Saint-Loup, o seu melhor amigo, apresentado nos primeiros volumes do livro como um mulherengo imbuído de altos valores patrióticos, morreu na guerra. Antes visto como símbolo de elegância, e tido como figura cultivada que em qualquer festa era bem recebida, o Senhor Swann sucumbe à doença e, por causa das suas origens judaicas, que contrastam com a fidalguia aristocrática, o seu apelido é enterrado com ele, e até a filha e a viúva, a mencionada Odette, mudam de nome. No passado visto como histriónico, histérico, fonte de quezílias e apaixonado pela vida social, o Barão de Charlus ainda não faleceu, mas não consegue andar sozinho, perdeu a visão e pouco exibe da figura extrovertida que Marcel conhecera. Por sua vez, adoentado e pressentindo a chegada da velhice e da sua própria morte, Marcel já não perde o sono com ciumeiras, nem sofre com antecipações de encontros. Esqueceu o sofrimento causado pelas traições e pela morte de Albertine, apagou os sentimentos exacerbados que o instigavam a escrever cartas de amor, a prometer casamentos, a jurar mudanças radicais de vida. Deslembrado dos sentimentos juvenis que o impeliam a gastar semanas e meses com lucubrações acerca das mulheres que adorava, encontra e conversa com Gilberte, mas ao invés da timidez do passado, sente a indiferença de quem não se importaria de nunca mais a ver.
Findas as ilusões, o que resta a Marcel é aceitar o envelhecimento, esperar pelo fim último que é a morte. Talvez seja apropriado afirmar que esse fim último está relacionado com o desaparecimento da esperança. Quando o homem se mentaliza de que já não tem a quem escrever, que determinado perfume deixou de o remeter para o pescoço de uma donzela com a qual privou anos antes, que no cheiro do café não reencontra mais “essa vaga experiência de um belo tempo que constantemente nos sorria”, que faces como a de Guermantes perderam os traços da arte clássica, é aí que a memória, conceito que mescla passado, presente e futuro, se esvai. O homem irreal, da saudade, do amor por concretizar, não suporta esvaziar-se de expectativas.