Adaptar, ordenar e remunerar
Há mais de vinte anos que alguém que me dizia muito defendia um ordenamento das cidades e do campo que fomentasse a redução drástica da utilização do carro por parte de cada um. Há mais de dez que considerava o dia sem carros uma iniciativa perdida porque de norte a sul em Portugal, pouco ou nada se fez em relação a esse ordenamento. Daí até hoje, nem tudo se manteve igual, mas em quase todas os locais, ficou-se pelo irremediável “poucochinho.”
Bom, verdade seja dita e para lá do aumento ofensivo no preço dos combustíveis de hoje, noutra estratosfera, surge um senhor cuja entrevista acabo de ler, que se manteve fiel aos níveis de reacionarismo primário de sempre. Não mudou. Alguém que não entende ou faz por não entender a urgência dos tempos. Qual automobilista negacionista e furioso com tudo aquilo que mexe com o seu interesse, este presidente do Automóvel Clube Português é mais o kamikaze ideólogo dispensável e que, em cada palavra, só esmorece a razão de muitos na contestação aos preços no combustível.
Parece-me que a forma mais adequada de lidar com estes céticos e negacionistas é largar o facto de as alterações climáticas estarem aqui ou não e simplesmente deslocar o debate para as medidas e ações concretas que devemos tomar como sociedade. Ignorar que as diretrizes da União Europeia e a falta de vontade numa solução conjunta nos Estados-Membros para que se procure baixar a taxação nos combustíveis não está também relacionada com a resposta às alterações climáticas e o Green Deal europeu é o mesmo que declarar que as cidades portuguesas e não só, oferecem enumeras condições para soluções alternativas ao carro a gasolina ou diesel.
Em 2019, face aos “coletes amarelos”, o governo francês recuou na taxa ecológica sobre os combustíveis e já este ano, o governo norueguês teve de adiar a substituição dos automóveis a combustão pelos veículos elétricos. Em quase todos os países, a renovação dos edifícios para melhorar a eficiência energética está atrasada face aos prazos estabelecidos. Invariavelmente, vai-se dar sempre ao mesmo: estas medidas acabam por ser incomportáveis para quem recebe salários tão baixos. Nos países africanos, para sobreviver, os mais pobres vendem ilegalmente carvão que produzem com a queima das árvores.
Todos os governantes hoje deveriam saber que sem uma diminuição drástica das desigualdades sociais, não se conseguirá uma transição ecológica atempada. Não se trata de esquerda ou direita. É mais um facto.
Não se poderá preservar as condições para a vida humana no planeta e desenvolver grandes ações concretas, sem prestigiar e remunerar devidamente as atividades sem as quais não sobrevivemos. Essa é a primeira grande lição que já se pode retirar neste combate às alterações climáticas.
Para adaptar é preciso ordenar e remunerar.