O legado de Kaneto Shindo: a memória, a guerra e o isolamento
Porque é que o Ocidente demorou tanto tempo a reconhecer a importância e sofisticação do cinema japonês?, perguntou Jonathan Rosenbaum certa altura; o autor apontou como motivo a própria insularidade cultural e geográfica do país, que se acentuou especialmente durante os finais dos anos trinta e durante a Segunda Guerra Mundial. Evocou também Noël Burch, que afirmou que a ‘era dourada’ do cinema japonês decorreu precisamente durante o período em que o país se encontrava mais fechado a influências externas, e, consequentemente, livre para perseguir isoladamente as suas principais consternações, sem a influência dos valores culturais de Hollywood e da Europa.
A obra de Kaneto Shindo é um destes casos. A sua filmografia encontra-se nitidamente tingida pelo espectro da guerra, mais especificamente, a Segunda Guerra Mundial e as consequências na vida da população japonesa, ainda que o seu imaginário fílmico nem sempre tome esta guerra – e por vezes nenhuma guerra em concreto – como elemento da diegese. Esta ambiência vai influenciar determinantemente a estética da sua obra, muito definida pela atmosfera pesarosa que os jogos de luz/sombra e os planos das paisagens imensas, isoladas, exaltam, numa tentativa de criar um universo de pessoas errantes, o devir do seu destino colectivo após a guerra ou outro tipo de conflitos sociais. Neste contexto, Hiroshima assume-se um espaço de possante influência na mundividência de Kaneto Shindo – também pelo facto de o cineasta ter aí nascido – ainda que não seja sempre directamente representado nos seus filmes; é-o no filme Filhos de Hiroshima//Genbaku no ko (1952), todavia, mesmo quando Shindo se desloca para eixos temporais e espaciais distintos, muitas vezes perdura a atmosfera lúgubre, sórdida, que se materializa na descrição dos personagens, na fotografia, na mis-en-scène.
O espectro da guerra molda os personagens de Shindo, que se definem amiúde pela ausência de um comportamento civilizado, projectando assim uma visão da humanidade que se define pela crueldade inata, pela indiferença perante o sofrimento alheio, pelo despojamento de princípios e valores morais. Contudo, em A Ilha Nua//Hadaka no shima (1960), o comportamento dos personagens não é uma consequência da guerra, mas de outros aspectos também explorados na obra de Shindo, como o isolamento, a solidão, a luta pela sobrevivência, que em filmes como Onibaba (1964) e Kuroneko (1968) se relacionam com um histórico de conflitos típicos do Japão feudal, assolado pela ignomínia e pelo terror.
Em A Ilha Nua, Shindo produz uma experiência sensorial através de um segmento de quadros, que, paulatinamente, vão captando a acção através de diferentes ângulos – o quotidiano de uma família que vive isolada numa ilha à beira mar, a faina fastidiosa e repetitiva, a relação lânguida, mecânica, entre os quatro elementos da família. Desprovido de diálogos, A Ilha Nua, comummente descrito como um filme-poema ou um poema visual, é uma obra que observa o fastidioso dia-a-dia de uma família cuja sobrevivência depende inteiramente de uma terra estéril – derradeira e escatológica visão da condenação humana ao trabalho que bebe do mito de Sísifo. Esta família vive unicamente para o labor; nem a solidão, o isolamento atroz, mascarado pela beleza da paisagem insular, parece confrangê-los, já que o seu único objectivo é a sobrevivência. Também em Ningen (1962) Shindo conta uma história de sobrevivência através de uma narrativa bastante diferente, centrada na viagem de uma embarcação que, inesperadamente, perde todos os mantimentos. A partir deste acontecimento, testemunhamos o galopante desespero da tripulação à medida que a fome e a sede vão aumentando, tornando-os incapazes de controlar os impulsos mais selvagens do instinto de sobrevivência.
A sobrevivência é também tema crucial de Onibaba (1964), uma alegoria visual sob a estrutura de um filme de terror sobre duas mulheres que procuram sobreviver em plena guerra civil no Japão feudal. O filme sustenta-se numa atmosfera sobrenatural que, no final, é desmentida, revelando-se tão-só um subterfúgio para a maldade humana, todavia, em Kuroneko, a força sobrenatural é ‘real’ na diegese, mostrando novamente duas mulheres – ainda que, neste filme, sejam espíritos que ambicionam vingar-se dos samurais que as violaram e mataram. O espectro das consequências atrozes da guerra corporiza-se no fluxo de imagens criado por Shindo, desde as sequências do infindável campo de canaviais onde habitam as duas mulheres, em Onibaba, como analogia do isolamento e apartamento da civilização, que também impregna as imagens sombrias e enigmáticas de Kuroneko, à medida que o protagonista vai entrando no mundo onde habitam os espíritos da mãe e da esposa.
Desvendamos, portanto, uma relação muito especial com a memória na obra de Shindo; o cineasta reconstrói espaços pessoais, como em Os Filhos de Hiroshima, através da viagem da protagonista à terra-natal, cenário de ruínas e pardieiros dispersos nos subúrbios da cidade, e, em Kuroneko, resgata as memórias do protagonista e fá-lo experienciá-las novamente. Em Os Filhos de Hiroshima, Shindo reaviva as memórias do bombardeamento em Hiroshima através de sequências dramaticamente encenadas, com os quadros pitorescos de pessoas a sucumbir à radiação, dos edifícios a resumirem-se a ruínas, do fumo a aglomerar-se sobre a paisagem devastada, ao mesmo tempo que a música intensifica o dramatismo aterrador.
Esta é a primeira memória que acomete a protagonista ao chegar a Hiroshima; todavia, é ao deambular pela cidade parcialmente reconstruída que ela vai revivendo outras memórias, despoletadas por encontros com pessoas que lhe são familiares, ou quando percorre espaços, interiores ou exteriores, intocados ou devastados, que lhe fazem recordar os tempos em que vivia na cidade. A memória como reconstrução nostálgica do espaço-tempo mais marcante e aprazível da vida de cada um, em comparação com o presente angustiante, diante do qual se impõe um futuro obscuro e pessimista. Em Ningen, o presságio da morte iminente perante a escassez de comida e água é o que faz os personagens reviver o passado através dos vários flashbacks que surgem ao longo do filme.
O mundo de Shindo é vastíssimo, repercutindo concomitantemente várias tendências narrativas, temáticas e estilísticas ao mesmo tempo que consolida o seu lugar como uma das filmografias mais singulares do panorama cinematográfico nacional. Sobretudo Onibaba e Kuroneko manifestam claras influências do teatro tradicional japonês na mis-en-scène, como os jogos de luz/sombra, que deformam os cenários e ampliam a sua tenebrosidade, ao mesmo tempo que acentuam as formas e os movimentos dos corpos dos personagens no espaço. Em Kuroneko, confrontamo-nos, nos close-ups, com as expressões frias e bizarras das duas mulheres, que encontram na expressividade teatral as técnicas para intimidar o espectador, sensação reforçada pelo hikimayu – também muito associado ao teatro tradicional japonês – hábito de arrancar as sobrancelhas e substituí-las por borrões negros. Esta encenação meticulosa das personagens femininas é um dos aspectos mais idiossincráticos do universo fílmico japonês do período; vários destes filmes projectam uma visão da mulher tanto ignóbil como heróica, como a figura mística – e também fetichista – da mulher ‘fatal’ que domina o homem em Kuroneko. Neste filme, a casa onde o protagonista se envolve com o espírito da mulher revela-se, no final, um espaço em ruínas – pois não passava de uma ilusão que recriava a casa como era no passado – imagem que nos remete imediatamente a um dos segmentos de Contos da Lua Vaga//Ugetsu Monogatari (1953) de Kenji Mizoguchi.
Shindo não só revelou uma cumplicidade estética e temática com o cinema japonês da época, como também se encarregou de trazer um legado importantíssimo – corroborando assim as teorias de Rosenbaum e Burch de que o cinema japonês alcançou o auge ao perseguir as suas principais consternações sem a influência da indústria de Hollywood ou de outras cinematografias. Será atrevimento dizer que foi a única cinematografia a conquistar este feito; porém, podemos afirmar resolutamente que Kaneto Shindo primou pela sua singularidade – da mesma maneira que Kenji Mizoguchi ou Yasujiro Ozu – pelo triunfo estético, narrativo, mas também pela sensibilidade e audácia com que explorou a dimensão mais obscura do imaginário nacional japonês.
Referências
Rosenbaum, Jonathan, Eastern Promise – publicado a 10 de Maio de 1981