Entrevista. Lina e Raül Refree, a reinventar o fado de Amália
No início de 2020, saiu um álbum de fado diferente do comum. Lina_Raül Refree, nomeado a partir do duo homónimo composto pela fadista Lina e pelo produtor Raül Refree, é um disco minimalista, esparso e sem guitarras de fado, aqui substituídas por sintetizadores, pianos e outros instrumentos de teclas. São 11 as canções de Amália Rodrigues que celebram o legado da brilhante fadista de uma forma pouco convencional, mas encantadora e intensa. Estivemos à conversa com Lina e com Raül sobre o projecto, que será apresentado no próximo dia 22 de Novembro, no Teatro Maria Matos, em Lisboa, no âmbito do Misty Fest.
Vocês conheceram-se depois de uma noite no Clube de Fado e pouco depois já estavam em estúdio a trabalhar. Foi natural o processo de trabalhar o fado e torná-lo electrónico? Como chegaram a essa decisão?
Raül: Bom, na realidade, este projecto foi uma comissão. A Uguru [produtora portuguesa], ou melhor, a Carmo Cruz veio procurar-me para trabalhar num projecto de fado e apresentou-me a Lina para ver se queria fazê-lo com ela. A verdade é que, desde a primeira vez que a ouvi cantar, pensei que seria a voz perfeita para este projecto. No dia seguinte, fomos para o estúdio e eu, pelo menos, tenho a sensação de que encontrei o caminho por onde dirigir o projecto, como trabalhar com a voz da Lina, como trabalhar com o fado; penso que foi progressivo, mas desde o início tive a sensação de que já tinha o caminho aberto, de que não me custaria abrir caminho.
A parte da electrónica é muito subjectiva, porque para mim não é um disco nada electrónico. É um disco muito clássico, de música clássica. Tem arranjos muito contrapontísticos, há muito piano, muito órgão, muito Rhodes — são instrumentos, para mim, muito clássicos. Utilizei sintetizadores, é certo, mas são sintetizadores vintage, dos anos 70. Não me parece um disco com uma sonoridade especialmente electrónica, se entendermos como electrónica algo moderno. Se pensas numa electrónica mais perto dos anos 70, poderia ser.
Sim. Para mim, é mais a antítese entre o fado, com as guitarras, e isto que é completamente distinto e, não soando como música electrónica moderna, é feito com elementos electrónicos, digamos. Era mais esse o meu pensamento.
Raül: Sim. No fundo, há uma série de padrões nos diferentes estilos de música do mundo que há que reproduzir, segundo os puristas. No caso do fado, são instrumentos muito claros, mas bom, eu sempre tive a sensação de que poderia acompanhar essas melodias, que são muito emocionantes, de outra maneira, com outros timbres e inclusivamente com outras harmonias. No final, não houve uma intenção de romper com nada, mas sim de construir e dar um ponto de vista pessoal.
Não é a primeira vez que fazes isso, já trabalhaste com flamenco e outros estilos mais clássicos. Quais foram os desafios desta aventura em particular?
Raül: Cada disco tem os seus próprios desafios, como poderás imaginar. É verdade que, às vezes, a distância geográfica já é um desafio, no facto da desvantagem que eu tinha no início, como desconhecedor do fado. Eu nunca tinha entrado na cena do fado nem tinha sido melómano do fado. Vivo em Barcelona, já tinha escutado fado, mas não da mesma forma que o escutam em Portugal ou que o escuta a gente que se dedica ao fado. Essa podia ter sido uma desvantagem, mas penso que lhe dei a volta e a tornei numa virtude porque, às vezes, quanto mais és conhecedor de algo ou mais o viveste, mais medo tens de mudar coisas ou fazer uma leitura pessoal. Apesar de poder ter feito uma investigação maior e entrar muito mais dentro da cultura de fado, a minha decisão foi, sobretudo graças a alguém com quem podia contar e que domina o fado desde muito pequena, como a Lina, de tomar a licença de trabalhar desde o desconhecimento, desde a liberdade total. Isso para mim é uma das virtudes do disco.
O peso e as discussões sobre a tradição tiveram alguma influência no vosso processo criativo?
Raül: Não, eu penso que a Lina já sabia que, se trabalhasse comigo, era para encontrar um disco que não seria tradicional. Eu podia ter algumas dúvidas no início, porque a minha experiência noutros casos foi que pessoas que vêm do tradicional, apesar de estarem a trabalhar com um produtor e músico que não é ortodoxo, têm momentos de dúvida ou de medo. Não tive essa sensação com a Lina. Penso que ela teve a sensação de deixar-se nas minhas mãos sem problema, juntar-se ao que eu propunha e desfrutá-lo. Penso que esse foi um dos pontos fortes da gravação, a Lina não teve dúvidas. Ela confiou em mim plenamente.
Lina: A tradição estará sempre associada à minha forma de cantar. Tudo o que absorvi até hoje e tudo o que fui aprendendo ao longo destes anos acaba por influenciar bastante tudo o que foi feito neste projecto. Sempre optámos pelo caminho da emoção e de seguirmos livres em todo o processo criativo deste álbum. Isto era o ponto mais importante para ambos. Obviamente que a tradição é igualmente importante e nunca quisemos desrespeitá-la. Não pode existir inovação sem que haja uma tradição, um ponto de partida. Alargámos o tempo da música e das palavras, mudámos a instrumentação, mas não mudámos as melodias. Na fase de experimentação em estúdio, fomos descobrindo qual o caminho que queríamos seguir, sem pensar no que nos era ou não permitido.
Qual foi a reacção que tiveram a esta reinvenção do fado, particularmente do público mais tradicionalista?
Lina: A reacção foi e tem sido muito boa. Lá fora temos recebido imensos elogios, inúmeros prémios e nomeações e o público tem-se revelado bastante emocionado com o nosso projecto. Em Portugal vencemos o importantíssimo Prémio Carlos do Carmo, atribuído pela Sociedade Portuguesa de Autores, que também tem apoiado o nosso projecto desde o início. Mas, como em tudo, não podemos agradar a todos. Há sempre alguém que gosta muito e alguém que não gosta nada.
Raül: Ao contrário de outros discos, talvez porque me eram mais próximos, discos em que os puristas me atacaram muitíssimo e demonstraram desgosto por aquilo que eu faço, não tive essa reacção em Portugal. Muito pelo contrário, do pouco que vi, as críticas foram boas. É certo que — e não sei se estou bem em dizer coisas destas — esperava que o disco tivesse mais repercussão em Portugal. Teve muita repercussão na Europa, recebeu prémios pela Europa e apareceu nas listas de melhores do ano em países nórdicos, na Inglaterra, em França, na Alemanha… e quando vamos tocar por aí (acabámos de chegar de Oslo) é impressionante, está esgotado e as pessoas estão ao rubro quando tocamos, vive-se de uma forma muito forte. Espero que este próximo concerto em Lisboa mude isso, mas, pessoalmente, ainda não tive esta reacção em Portugal. É certo que as pessoas que vieram aos concertos anteriores desfrutaram, mas eu esperava que, sendo um património musical português, haveria um público maior a desfrutar do disco. Mas bom, cada país reage à sua velocidade e se calhar precisam de mais tempo.
Como se escolhem canções de um repertório tão vasto?
Raül: Neste momento concreto em que vivemos, em que o formato de álbum já não tem o mesmo peso que há uns anos, insisto sempre muito que tenha um sentido como conceito, como um todo. Eu falei disto com a Lina porque a minha experiência noutros discos em que trabalhei como conceito foi muito positiva. Acho que ajudas um público cada vez mais fraccionado ao nível da escuta. O nível de atenção que temos como ouvintes diminui pela forma como se consome a música hoje em dia. Penso que se criares um conceito em redor do disco, estás a ajudar o ouvinte a sentir-se parte de uma viagem. Comentei isso com a Lina, disse-lhe “temos de encontrar um conceito, algo que una as canções para que as possamos viver como um todo”. Ela, penso que como muitos portugueses, foi muito fã da Amália. Pensámos que seria um fio condutor maravilhoso, que fossem fados cantados pela Amália, fados muito antigos.
Lina: É verdade que a Amália tem um repertório infindável e de um bom gosto surpreendente. Inspirei-me por isso nos clássicos, que são muitos, e com a visão do Raül fomos pouco a pouco acrescentando um a um. Quando cantei com o Raül em estúdio pela primeira vez, percebi que precisávamos de espaço na música e que os fados demasiado ritmados não iriam ter o mesmo resultado emocional, ao contrário de um fado que pudesse estar livre de tempo, como se fosse cantado à capela. Era essa a sensação que queria ter e por isso os fados iam surgindo no meu pensamento naturalmente. O Raül ouvia o original — às vezes só uma parte para não ser influenciado e poder criar livremente — e iniciávamos o processo criativo entre ambos guiados pela emoção.
Depois, no final, têm a inclusão da “Voz Amália de Nós”, do António Variações. Qual foi a ideia por trás de incluir essa canção?
Raül: Essa canção tem uma ideia dupla por detrás da mesma. Por um lado, do meu ponto de vista, não usámos a guitarra em todo o disco e eu, justamente antes de trabalhar neste projecto, tinha feito alguns discos importantes em Espanha em que desenvolvia os arranjos na guitarra, juntamente com a Rosalía, com o Niño de Elche, com a Sílvia Pérez Cruz… Apesar de o piano ter sido o meu primeiro instrumento, não tinha trabalhado num disco como este, em que tocasse piano e nada de guitarra. Então pareceu-me muito interessante fazer um disco em que o grosso do disco fosse com um instrumento inesperado para a maioria dos ouvintes que me conhecem e terminar com uma faixa bónus em que sim tocava guitarra. É uma canção muito diferente que diz muitas coisas. Por um lado, a letra diz que todos os portugueses têm a Amália na voz, mas também diz que houve gente que foi outsider, que tentou encontrar outros caminhos na música portuguesa. Isso é uma pequena homenagem a toda esta gente através desta canção de um personagem muito influente [António Variações].
Lina, como foi cantar sem o acompanhamento da guitarra?
Lina: É como se ela estivesse sempre lá. O papel da guitarra é responder à voz. É o de acompanhar, o de guiar, o de dar espaço para cantar… e não o de impor um tempo. O Raül tem essa sensibilidade apuradíssima. A guitarra tem um som muito particular que me faz vibrar, mas vibro de igual modo quando sinto que estão comigo, que há conexão musical e, acima de tudo, sensibilidade. Às vezes acontecem momentos muito especiais em cada música e estamos tão envolvidos que entramos num estado de alma muito intenso. Todos os instrumentos que o Raül toca são importantes, mas mais importante que os instrumentos é a forma como ele toca e sente cada música.
O que aprendeste de novo sobre o fado com este projecto?
Lina: Aprendi que há várias formas de sentir o fado. Que é possível recriar o que é tradição e que é onde me sinto também muito confortável. Arriscar vale a pena. Não por querer fazer diferente, mas porque era o que eu sentia que fazia sentido pra mim, para a minha forma de sentir a música e de tentar elevar o que me proponho a cantar. Aprendi que o Fado pode ser ainda mais dramático e mais bonito, se o deixarmos seguir o seu caminho, sem barreiras e sem pretensiosismo.
Em breve, vão dar um concerto em Portugal. Como se desenrolam os vossos concertos ao vivo?
Raül: Essa é uma parte importante deste projecto. Por um lado, posso contar-te que eu, antes de fazer este projecto, estava um pouco cansado das convenções que há no concerto. Há concertos que funcionam assim e parece-me bem, mas essa ideia de tocar uma canção, aplaudem-me, toco outra canção, aplaudem-me de novo, já sabemos que no final saio e voltarei para um encore… aborrece-me, sabes? Eu propus para este projecto que tentássemos que, como o disco é uma viagem, o concerto também o fosse, que quase não houvesse pausas, que houvesse muita improvisação no sentido de tocarmos como nos sentíssemos no momento. Desde há uns anos, eu não repito o que já toquei. Sabes porquê? Porque me aborreço muito rápido de mim mesmo. Isto não é uma virtude, simplesmente acontece assim. No final, encontrei este espaço em que sou mais feliz, que é o de sair para tocar e não saber muito bem o que vai acontecer, mas confio em mim, no que posso oferecer-vos. Penso que assim se cria uma relação muito forte com quem estás a tocar e com o público, porque nota que aí está a acontecer algo que não aconteceu no dia anterior noutra cidade. Assim é o concerto, acho que é muito espontâneo e muito intenso. Penso que não é um concerto fácil, mas é um concerto muito grato.
Têm intenção de continuar com o projecto?
Raül: Sim. A ideia agora é descansar. Apesar da pandemia, nós fomos um projecto que, por tocar em teatros, demos vários concertos internacionais, parámos muito pouco. Ainda nos faltam muitos concertos, mas penso que será bom respirar e ganhar forças para podermos focar-nos num novo disco. Pela minha parte, tenho muita vontade.