Um conto de Natal chinês

por Pedro Saavedra,    21 Dezembro, 2021
Um conto de Natal chinês

Estamos todos sentados à mesa e é ela que nos sustenta com o seu conteúdo. Mas antes do conteúdo, a forma de nos receber alimenta-nos sem nos fazer escorregar proteínas e hidratos boca abaixo. Como nas páginas de um romance muito conhecido estamos à espera de alguém que há de chegar ou talvez não, ainda não sabemos. Mas esta mesa que nos existe entre braços e pernas é a personagem principal do tudo que está a acontecer à nossa volta.

Mesa de Quatro Pernas de Plástico Branco e Orifício ao Centro, produzida pelas melhores máquinas de injecção de moldes de plástico, produto da moderna rota da seda, poderia oferecer-nos um recital com Li Qiang a gritar um cuidado staccato na direcção da jovem chinesa que acciona, a quatro mãos, a prensa mecânica de oito toneladas; Cuidado! Tarde demais para o dedo médio da sua mão esquerda, agora já ele com ele em lençol incandescente que, descaído dos braços da máquina, humanizara aquele plástico, imprimindo-lhe um ADN para os próximos quinhentos anos.

Nada parou, porque nunca nada parava durante o turno de Li Qiang, que dentro estava num Antes de começar o trabalho de mudar o mundo dá três voltas dentro da tua casa. Repetia ele várias vezes ao dia sempre que sentia o mínimo de ansiedade ou o mínimo de dúvida sobre o sentido da vida. E repetia agora mais uma vez sem interferência do grito monossilábico, contido, quase envergonhado, da jovem, enquanto a mulher lhe embrulhava a mão já incompleta em compressas de tecido.

Humanizado, o tampo branco PVC foi avançando, ritmado, secção a secção, sendo zelosamente levantado e empurrado por vários elementos metálicos até chegar às mãos suaves de quem, já há cinco anos, o esperava no fim da rampa de rolamentos. Era embalado sempre com a mesma coreografia, acrescentado com uma segunda pele, película suave de transparência desinfectante, depois gentilmente coberto com pequenos e leves flocos de poliestireno expandido para finalmente repousar numa caixa de cartão selada sobre si mesma. Li Qiang, ele mesmo, não sabia, mas estava a assistir à criação de um adereço teatral. Olhando para a caixa com aqueles grafismos estrangeiros indecifráveis, não suspeitava que no seu conteúdo já viajava a personagem mais importante do preâmbulo da tragédia que se estava a preparar do outro lado do mundo, a ser carregada, ali mesmo, para dentro daquele camião Dongfeng KR que a lançava da província de Zhejiang para uma epopeia de dez mil e seiscentos quilómetros até uma zona comercial do centro de Portugal.

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