Urbanismo ciclável, a propósito de “How To With John Wilson”
Recordo-me de ler, há uns tempos, um artigo muito impressionante sobre carros em Manhattan. Terá sido, provavelmente, a propósito de urbanismo — ou pelo menos fui lá parar através do tema — e apresentava um retrato de uma cidade dedicada aos carros. Estão em todo o lado: nas estradas, claro, mas também nos respectivos lugares de estacionamento. O espaço ocupado pelos carros é imenso, e torna-se quase ridículo imaginar que eles estão estacionários (estacionados), numa paciente imobilidade, durante grande parte do seu tempo de vida.
De facto, as representações de Nova Iorque são geralmente contaminadas pelo mundo rodoviário — devemos-lhe, no mínimo, Taxi Driver, e há tanto mais… — mas há um inevitável choque quando contrastamos essa real cidade automóvel com a ideia de uma polis cheia de vida, com ruas preenchidas de boutiques e bistrots, na qual a população de movimenta livremente, e onde há sempre algo para fazer. Nova Iorque é mesmo assim — vasta e vibrante – e sabemo-lo porque John Wilson continua a filmá-la.
A série, que tem sido lançada em simultâneo em Portugal (felizmente, longe estão os atrasos de vários meses na distribuição televisiva europeia…), teve um magistral terceiro episódio dedicado ao estacionamento automóvel em Nova Iorque: How to find a spot. O olhar verdadeiramente antropológico da sua câmera descreve os humanos de Nova Iorque e seus hábitos, documentando processos bizarros que vão muito além do tema a que cada episódio se propõe: cenas como a estranhíssima dança automóvel, que conserva os lugares de estacionamento enquanto permite que as ruas sejam limpas, são tão extraordinariamente absurdos que parecem inventados. John Wilson, na sofreguidão fílmica que tudo documenta, revela momentos de uma vida citadina que ou são tão efémeros que dificilmente se pode registar, ou estão tão enraizados na cultura que não se julga relevante dar-lhe destaque.
Neste episódio em particular, Wilson aborda o urbanismo de forma tal que sobrevém uma intenção que só não é manifestamente política porque parte de uma particular inocência: o que seria Nova Iorque sem carros? Interessa-me recuperar este momento: a pandemia que vivemos (no passado, e no presente), no meio do caos e do sofrimento, trouxe breves períodos de alguma claridade — e experimentou-se, ainda que involuntariamente, esse futuro diferente, não dependente do automóvel. Há imagens de ruas que roubaram ao automóvel o seu lugar de estacionamento, e que, com naturalidade, reclaram de volta a ocupação pedonal. A estrada voltou a ser também lugar de convívio, e não apenas de passagem, constrastando com a passagem automóvel, que pela sua perigosidade inerente, torna exclusivo o uso da estrada.
Há um maravilhoso (mock)documentário de 2007, Radiant City, que lança um mordaz olhar sobre a vivência suburbana estadunidense, refém das longas estradas alcatroadas, dos incessantes engarrafamentos, do deserto absoluto que é a vida familiar sem uma vida social. É sátira, algo exagerada, mas inteiramente real; se, por um lado, o nosso país não tem essa estrutura megalómana de consumo alimentado a gasolina, tal apenas se deve à nossa pobreza, porque há outros vários pontos que nos permite ainda a identificação.
A mudança de paradigma não pode ser apenas à escala individual, porque o planeamento urbano tem que partir também de iniciativas que controlem o trânsito e defendam quem usufrui das estradas. Andar de bicicleta em Lisboa, por exemplo, está melhor — não só, mas também, devido à ciclovia da Almirante Reis, que indirectamente também beneficia o trânsito dos veículos de emergência — mas ainda se nota, nos pulmões, a enorme quantidade de gases tóxicos que se inala em hora de ponta, atrás dos carros. Anne Hydalgo em Paris, com todo o risco que acarreta tão radical medida, propõe que a cidade seja 100% ciclável até 2026. É difícil imaginar que as pessoas não sejam mais felizes, mais seguras, e mais saudáveis em consequência.
Quanto a John Wilson, fica a nota do seu importantíssimo programa televisivo. É humor, claro, mas não só: há ali uma cândida sinceridade, e um olhar muito atento que revela momentos de vida preciosíssimos. A temporada, felizmente, está longe de terminar; oxalá venham muitas, muitas mais.