O triunfo de “A Gorda”, de Isabela Figueiredo
Na contracapa: “Estou aqui de passagem, é para seguir em frente, sou de ferro e ninguém me dobra. Em silêncio, sou sempre eu e o que em mim se compõe e apruma”. Abrimos o romance e debatemo-nos com três epígrafes: uma da autoria de Mary Shelley, outra de Javier Cercas e, por fim, Henry David Thoreau. O que as une? A solidão, a luta e a confissão. De seguida, colidimos com uma epígrafe sonora, que engloba artistas como Nina Simone, Prince e Lou Reed. De pulmões cheios, esta ‘gorda’ avisa-nos: esta é uma narrativa para se ler atenta e inteiramente. Existe uma intenção clara em contar, em partilhar, em fazer-se ouvir. Falará das suas entranhas, entranhar-se-á no nosso cerne. Narrará o seu passado neste romance confessional, porque, como afirma Javier Cercas, “viver um presente sem passado é viver um presente mutilado”. A partir do momento em que escutamos a sua playlist, o nosso mundo funde-se na vivência experiencial desta mulher. Ela falará e falará nos seus termos, descartando o comedimento. Não há grande lugar para nós, contudo acolhemos, talvez resignados, mas aceitamos e escutamos.
A Gorda é o primeiro romance de Isabela Figueiredo e procede Conto é como quem diz (1988) – que lhe valeu o prémio da Mostra Portuguesa de Artes e Ideias -, e Caderno de Memórias Coloniais, publicado em 2009. Após a leitura deste último e d’A Gorda, as questões colocam-se: será este novo romance uma autobiografia? Quem é esta gorda? Será Isabela Figueiredo? A autora adverte-nos, mais uma vez, de forma sui generis: “Todas as personagens, geografias e situações descritas nesta narrativa são mera ficção e pura realidade”. Sentimos os nossos palpites morrer e desistimos de tentar criar pontes entre a biografia e este romance. Como diz o povo, ela sabe-a toda e não há qualquer problema!
“A vitória dos solitários não tem testemunhas e torna a solidão mais só. Ninguém nos olha com orgulho. Ninguém nos dirige uma palavra de apreço. Estamos sempre iguais na solidão, sempre os mesmos, e é por isso que ignoramos os sucessos e nos concentramos no telejornal, como se não houvesse louça para lavar na bancada. E depois lavamo-la. De manhã. Ou à tarde. Depois.”
“A Gorda”, de Isabela Figueiredo
Neste romance, os capítulos introduzem-nos a cada compartimento da casa de Maria Luísa, na Cova da Piedade, em Almada. Sobretudo, apreenderemos a sua experiência através do seu lar, do seu espaço de eleição. Iniciamo-nos pela Porta de Entrada, percorreremos os quartos, a cozinha, as salas e terminaremos no Hall, lugar central da casa, por onde todos passam, mas ninguém fica. Assim, o que une este romance não é um fio temporal, mas este percurso pelo local sacro da protagonista.
Se este romance se distingue pelo manuseio imoderado, solto e sensacional da linguagem, demarca-se também pelos conteúdos temáticos e pelas questões sociais que aborda. Maria Luísa – filha de retornados – é enviada para um internato na Lourinhã, onde se fascina com Tony: “Tornei-me amiga da Antónia, Tony para os amigos, que se impunha como rainha entre nós, com o ar frio e distante de uma perturbada Lispector angolana” (p.31). Mais tarde, estudará Letras e Filosofia. Conhecerá David e apaixonar-se-á loucamente. Ainda que se cruze e se envolva com outros parceiros, será sempre David. Haverá tempo e espaço para a ‘mamã’ e para o ‘papá’, que a levou “à psicanalista do Campo de Santana, na qual passaria os cinco anos seguintes a [matá-lo]” (p.130). Falar-nos-á de filhos perdidos e do que é ser-se mulher numa sociedade patriarcal, enfatizando o nossos silêncio e revoltante submissão. Afinal: “estes acidentes não se contam a ninguém, porque quem fica a perder somos sempre nós” (p.200).
E é gorda. Maria Luísa, desde o internato, que queria “lá saber o que pensam sobre a comida. [Quer] é comer.” (p.160). Contudo, o que realmente pesa é a invisibilidade e a rotulação que advêm com ser-se gorda; é o ser-se visto e rejeitado enquanto a gorda. Num mundo sexista, nem as mulheres têm direito ao peso: “Encontrei-o [um blusão] num monte de roupa de homem, quase tudo em XL, porque os homens têm direito a ser grandes” (p.39).
Não sabemos se esta Maria Luísa nos conta o percurso de Isabela Figueiredo e não interessa, porque esta Maria Luísa é mesmo de ferro e não se dobra. Aguardamos ansiosamente pelo próximo trabalho da escritora para que nos possamos, quem sabe, voltar a fundir neste universo que mescla a aspereza e delicadeza, que mescla os paradoxos da vida e do amor.