Desconfortável
Não sei se será por limitação de custos ou por desejos masoquistas coletivos e ocultos, mas todos os diferentes congressos partidários em que participei partilham de uma quase aversão ao conforto. É no “The Thick of It”, uma série satírica da política britânica, que talvez melhor se encapsula a atração pelo desconforto na vida partidária: uma das primeiras decisões da nova diretora do Departamento de Assuntos Sociais e Cidadania, Nicola Murray, foi de substituir a velha cadeira do seu novo escritório por uma mais moderna, com apoio lombar. No primeiro dia como chefe de departamento recebe uma visita de Malcolm Tucker, o “enforcer” do primeiro-ministro e responsável por olear a máquina governamental, que mal entra na sala repara na nova cadeira, ordena que seja devolvida e justifica: “as pessoas não gostam que os seus políticos estejam confortáveis”.
Pode parecer que me estou a desviar do assunto, mas acho que este momento de ficção abre uma porta para a realidade. Claramente sem intenção, talvez esta frase seja útil para entendermos a situação interna do PSD nos últimos quatro anos, mas por agora voltamos ao 39º congresso do PSD.
Sentado nos bancos de plástico de um pavilhão mal iluminado e permeável ao frio invernoso, assisti à habitual dança de congressistas, ao falatório desconfiado, aos discursos mal ou bem preparados e aos reencontros azedos. Já habituado a este mundo caótico, acostumado ao desconforto de ver o que não gosto, ouvir o que não quero e aturar o que não preciso, passei os três dias de trabalhos a refletir na forma como explicaria a importância deste congresso a uma maioria que não está e nem tem de estar habituada. Ali, contemplativo, era para mim impossível ignorar a ironia de um congresso que Rui Rio tanto e tão publicamente tentou adiar, mas que agora o projetava em grande plano ao resto do país. Apercebi-me por isso que é impossível medir a utilidade deste congresso sem antes falar do homem que o desenhou e a quem melhor serviu.
Mesmo já não o sendo há oito anos, Rui Rio ainda pensa como um autarca. Em toda a sua ação, rege-se pela velha máxima dos meandros da política local: a de que o poder não se ganha, perde-se e por isso, assim pensa, quanta mais sede de o ter mostrarmos mais os eleitores iremos antagonizar. Pensa ele que, enquanto oposição, se não formos reservados nos constrangimentos que criamos a quem governa, mais espaço haverá para que nos acusem de condicionar, inflamar, promover ou até criar os eventuais falhanços da governação.
A verdade, é que enquanto líder da oposição, para bem ou mal, Rui Rio nunca condicionou a governação de António Costa ou inflamou o debate político e se há momento simbólico que melhor personifica esta tática de não-agressão foi em julho de 2020, quando o maior partido da oposição apresentou uma proposta a discussão que pretendia pôr fim aos debates parlamentares quinzenais com o primeiro-ministro. Pela boca do presidente do PSD, que era a suposta parte mais interessada nas oportunidades mediáticas que esses debates proporcionavam, defendeu-se que “o primeiro-ministro não pode passar a vida em debates quinzenais, tem de governar”. Nesse momento de tensão: mesmo depois da cortina de críticas que ocultaram o mérito das restantes propostas por si feitas, como a criação de um Conselho de Ética composto por uma maioria de não-deputados ou a integração de personalidades independentes nas comissões de inquérito para “despartidarizar” as discussões; mesmo depois de ser acusado de anti-democrático, muleta do partido socialista ou promotor da não-transparência; mesmo depois de consciente de mais um afundanço da sua cotação mediática, Rui Rio manteve-se impávido, continuou a defender que era preciso “acabar com a gritaria” e lá terminou com os embates quinzenais.
Um mês depois, perante este e outros sacrifícios políticos que provavam a vontade de cooperação do líder do PSD, António Costa decidiu mesmo assim esclarecer numa entrevista que “o governo cai no dia em que precisar dos votos do PSD para aprovar um orçamento”.
Num congresso cheio e em ambiente de união interna, para uns, mergulhado numa paz podre, para outros, Rui Rio disse sem precisar realmente de o dizer: que nos últimos quatro anos deixou António Costa governar, o primeiro-ministro governou e agora que tanto falhou não pode apontar o dedo nem responsabilizar o PSD pelos seus falhanços. Rui Rio grita sem precisar gritar, que o principal responsável pela crise política que vivemos é António Costa. Apenas com a sua presença, a de alguém que nos últimos quatro anos se predispôs a entendimentos e colaboração, Rui Rio serve de ponto de exclamação a uma verdade fundamental: em seis anos de uma realidade financeira favorável, com capital político para tal e com clara abertura do maior partido da oposição, este partido socialista para além de não ter feito as reformas que Portugal precisa é agora incapaz até de governar.
Percebe-se então a utilidade deste congresso como expositor ao resto do país das principais diferenças concretas entre o PS e o PSD. Seis anos depois de uma governação situacionista e de estagnação, este congresso foi o amplificador das ideias que comprovam qual o partido que realmente tem intenções reformistas: por exemplo, dois dias depois do discurso de abertura onde Rui Rio definiu que “o centralismo é o maior falhanço do pós -25 de abril” e que “o PS não tem coragem para honrar a sua própria palavra na questão da descentralização”, o país recebeu a notícia de que 80% dos 1295 postos de trabalho criados a título excecional para a gestão dos projetos do Plano de Recuperação e Resiliência (PRR), a “bazuca”, vão ficar em Lisboa.
Um congresso de um partido tem de ser uma experiência catártica e quando acaba por não o ser, é porque falhou. O 39º congresso do PSD assim o conseguiu ser.
Como forma de não ser levado à loucura, costumo dizer que para perceber a realidade política temos de prestar mais atenção ao sinal do que ao ruído. Essa é a máxima que uso para ler o fenômeno Rui Rio. Em quatro anos como líder do PSD, o partido nunca reencontrou a paz interna de outros tempos. Embora todos os seus apelos sonoros para a união, a mínima análise das suas decisões e ações ao leme do partido mostram-nos que para além de ter falhado em evitar as intrigas, Rui Rio queria-as e precisava que acontecessem. Para ele há guerras que vale a pena comprar porque pertence ao grupo de políticos (uns com mais mérito que outros) que se define como “anti-sistema”. Essa postura deu-lhe tudo menos conforto.
Que outro líder partidário para além de Rui Rio seria capaz de nos primeiros meses de mandato decidir, já sobre clima de crispação, processar ex-candidatos autárquicos do próprio partido por realizarem despesas não autorizadas e ultrapassarem orçamentos de campanha, tudo às custas do contribuinte português? Que outro líder partidário para além dele, tem a coragem de em período de eleições lançar-se numa guerra contra estruturas locais? Em Barcelos, por exemplo, foi contra as indicações da concelhia do PSD para a candidatura autárquica, provocou demissões locais por indignação e queixas no Conselho de Jurisdição, mas conseguiu mesmo assim que o candidato que apoiou roubasse o bastião socialista contra todas as perspectivas.
O problema de quem se define como anti-sistema, é que muitas vezes torna-se difícil explicar concretamente e indicar ao eleitor o sistema contra o qual se luta. É por isso que neste tipo de forma guerrilheira (e não em si menos meritória) de fazer política, mais fácil do que denunciar contra o que lutamos é conseguir mostrar contra quem lutamos. A política sem qualquer romantismo é sobretudo um jogo de percepções e para alguém que se percepcione como anti-sistema ter sucesso, precisa de alguém que personifique o sistema contra o qual luta.
Numa altura de desgaste midiático e aparente resignação generalizada perante o governo, o chumbo do Orçamento de Estado e as eleições diretas a 26 de novembro serviram como forma de reavivar o verdadeiro carisma de Rio: o de guerrilheiro. Mesmo não sendo verdade, a percepção que se criou foi que nestas diretas decidiu-se novamente o Rio anti-sistema ou o sistema, as “Estruturas”, o “Aparelho”, as “Distritais”, o “Cacique” e Paulo Rangel serviu para dar uma cara a tudo isto. Ganhou e embora Rio defendesse publicamente que aquele não era o momento certo, as últimas eleições internas foram essenciais para revitalizar a sua liderança e deram-lhe o capital político para fazer as mudanças que ansiava nas listas para deputados.
Em política e na vida é muito difícil resistirmos a um underdog. Todos queremos ser ou apoiar um Davi em vez de um Golias e mais importante do que realmente ganhar é um candidato conseguir aparentar que está a vencer, mesmo não estando.
Com público ao vivo, o congresso serviu para vermos os dois candidatos que Rio derrotou, Luís Montenegro e Paulo Rangel, subir ao púlpito e inevitavelmente recordar as derrotas internas, contra todas as perspectivas. Mostrou-se assim ao país um novo PSD, um que foi contrário ao aparelho partidário que tanto repugna o eleitor, ou pelo menos a percepção de tal.
Enquanto traiçoeiros e atraiçoados se desmontavam pelos corredores do congresso apenas para terem um lugar elegível para o Conselho Nacional, os novos homens e mulheres de Rio, os nomes que escolheu para encabeçar as listas ao parlamento, uma nova geração por ele lançada aproveitou para se apresentar aos eleitores que pretendem conquistar no dia 30 de janeiro.
No meio do inevitável ressabiamento, do claro desconforto e submerso num caos impossível de ocultar, Rui Rio ganhava uma vez mais e isso põe o eleitor a pensar. Afinal, as pessoas não gostam que os políticos estejam confortáveis e é nesse desconforto, quando “está picado”, que Rui Rio brilha.
Depois das manchetes que anunciaram mais uma vitória “contra tudo e contra todos”, depois de “limpar o partido”, Rui Rio propôs-se neste congresso a fazer o mesmo ao país, estando disposto a ir contra “todos os interesses económicos e políticos minoritários”. Com um novo guião apresentado, nada do que foi dito no seu discurso de encerramento do congresso foi para mim novidade, porque as propostas são as mesmas: reformar o sistema político, reformar o sistema judicial e descentralizar o país.
Num momento em que todo o país estava a olhar, o homem anti-sistema usou este congresso para dar uma cara ao sistema que pretende derrotar. “O PS tudo sempre fará para que o sistema, que se tem vindo a enquistar de forma preocupante, permaneça imutável e para que dessa forma continue a servir com eficácia o aparelho socialista que tanto se tem esforçado pela sua sobrevivência” foram as palavras escolhidas por Rui Rio e ecoadas por quase todas as intervenções que se seguiram.
O guião do filme está então escrito. Estas serão “as eleições mais importantes do século XXI”, como disse Ricardo Batista Leite, o seu cabeça de lista em Lisboa, porque o objetivo político de Rui Rio nunca foi o de apenas governar o sistema, mas sim o de o reformar. A batalha, pelo menos na narração, será entre o seu PSD comprovadamente renovado, descentralizador, reformista, moderado e disruptivo, contra o PS de continuidade de António Costa, aparelho monstruoso que até se confunde com o Estado, centralista e com interesse que as coisas se mantenham como estão.
Depois de tanto falar sobre conforto, deixem que vos fale daquilo que me deixa desconfortável. Para quem o deseja e para quem o teme, o meu conselho é que se habituem já à ideia de que o PSD vai ganhar as legislativas. A minha dúvida sempre foi sobre o que virá depois de dia 30. Estar num partido não deve significar que devemos ser poder só para o ser. A forma como o obtemos conta tanto quanto o ter. O meu medo e desconforto sempre foi se o PSD irá ser capaz de mostrar aos portugueses que só porque o PS o fez, nós não estamos dispostos a deixar que o governo de Portugal fique refém de forças extremistas, só para sermos poder.
É então que neste congresso ficou por discutir o elefante na sala: estará o eleitor preparado para ir às urnas mais do que uma vez, em 2022?
Para mim, a derradeira prova a Rui Rio é se será capaz de dar uma nega ao Chega quando o tempo inevitavelmente chegar e se assim o fizer, se colocar o ônus nas mãos do PS, se optar pelo derradeiro desconforto de ter o poder tão perto e de não logo o agarrar, conseguirá provar aos portugueses que o PSD é realmente a verdadeira força moderada e reformista. Só assim seremos mesmo o voto útil.
Crónica de Gaspar Macedo
O Gaspar é estudante de Direito, militante do PSD, comunicador e observador.