Votar no outro
Em 2018 mais de cinco dezenas de psicanalistas, membros da Sociedade Portuguesa de Psicanálise, subscreveram uma carta aberta sobre a situação política no Brasil. A carta alertava para a ideia de que uma liderança “tecida no ócio, no desejo de morte e de exclusão” constitui um ataque à democracia, ao estado de direito e às liberdades fundamentais. E que por outro lado “fomenta a destruição, o dividir para reinar, a corrupção, o medo, a impossibilidade/dificuldade de ser, de sentir e de pensar”.
Todos nós possuímos ideias socialmente partilhadas sobre o que é o certo e o errado. Criamo-las ao habitarmos um colectivo. Contudo, num processo terapêutico existe um convite não a esquecer estas ideias socialmente partilhadas, mas a repensá-las. A pessoa é convidada a pensar naquilo que poderá ser o mais certo para si, tendo em conta a sua subjectividade e alteridade. Quanto maior for a aceitação da própria alteridade, maior é a aceitação da alteridade do outro. A psicoterapia fomenta a liberdade individual consciente e responsável. Parte do trabalho terapêutico é precisamente responsabilizar o indivíduo das suas escolhas e consequências.
“A Psicoterapia ou Acompanhamento Psicológico só é possível existir numa sociedade que fomente o pensamento e aceite a diferença. O objectivo último da psicoterapia é dotar o indivíduo de ferramentas individuais que o permitam ser autónomo e responsável pelas suas escolhas. Por outras palavras, que a pessoa se torne mais consciente daquilo que é melhor para si e perceba as consequências que as suas escolhas podem ter em si e também nos outros. Contudo sabemos que o que é melhor para uns, não é o que é melhor para outros.”
Ganhar mais consciência ou compreensão de si não consiste numa mera mudança de opinião, trata-se sim de uma mudança na relação com o meio envolvente. E o que é o nosso meio envolvente se não os outros? Não existe mudança sem uma mudança na relação. Assim, a terapia procura convidar a pessoa a pensar sobre si e também sobre a realidade de uma forma saudável. A Psicoterapia combate aquilo a que chamamos de alienação. O papel do terapeuta é também reflectir com o seu cliente sobre o impacto que os factores individuais podem ter na sua individualidade.
Gostaria de aproveitar para desmistificar a ideia de que a terapia serve unicamente para aqueles que apresentam doença mental. Pelo contrário, a Psicoterapia ou Acompanhamento Psicológico serve para todos(as) aqueles que procuram melhorar a sua qualidade de vida. É um convite a pensar profundamente sobre si e sobre os outros. É através do pensar sobre si e sobre a relação com o outro que surge a mudança.
Sobre a mudança, “Tempora mutantur, nos et mutamur in illis” é um provérbio cuja tradução é “Os tempos mudam e nós mudamos com eles”. A mudança é inerente à existência humana e hoje todos a vivemos mais de perto. O terapeuta deve ser aquele que caminha lado-a-lado com a mudança. Não só caminha lado-a-lado como é um agente activo, fomenta-a com consciência e responsabilidade.
Há cerca de um mês no podcast “Psicoterapia na torre de Babel” saiu um episódio chamado “Psicoterapia, sociedade, poder e política”. Neste episódio Tiago Pereira, psicólogo, e David Neto, psicoterapeuta, moderados por Telmo Baptista discutem várias questões. Nesta reflexão que convido todos(as) a ouvir, o Psicoterapeuta David Neto diz-nos que votar em partidos populistas, é um voto vazio, um voto que não tem em conta o envolvente. Ou seja, é um voto vazio porque não é um voto que dá voz ao protesto, mas sim um voto que dá voz a uma visão que reprime. E é precisamente por não ter em conta o outro que não tem em conta o envolvente, o que envolve, que são os outros com as suas semelhanças, mas especialmente com as suas diferenças.
Apesar de existirem várias concepções de populismo, existe um aspecto comum seja de esquerda ou de direita, que é uma visão binária da sociedade e da política, onde se acredita numa distinção moral entre “os puros” e a “elite corrupta” (Mudde & Kaltwasser, 2018, disponível aqui). Verifica-se que os líderes populistas procuram unir o grupo, ao mesmo tempo que excluem aqueles que não os apoiam (Hoffman, 2018, disponível aqui:).
Parece paradoxal, contudo tal como Henrique Baltazar afirma na sua dissertação de mestrado realizada em 2019, quando um populista fala do povo, ele não se refere a todo o povo, mas apenas a uma parte dele. Isto é, a identidade deste povo que o populista diz representar não é construída de forma inclusiva, mas por exclusão “dos outros”, os extra-grupo. Os “outros” são deslegitimados, acusados de pertencerem às elites — sejam as económicas, os meios de comunicação, os progressistas, os urbanos, os homossexuais, ou mesmo as minorias raciais. Baltazar (2019) realizou um estudo onde foi possível concluir que o estímulo populista de direita desencadeia níveis mais elevados de clivagem da imagem dos outros, em comparação com o estímulo não populista. A clivagem da imagem dos outros é vermos os outros numa lógica dicotómica: bom vs mau. Em relação “aos outros” que ficam na categoria do “mau” são desenvolvidos sentimentos como a frustração, a inveja e a angústia, que é considerado como a base afectiva das formas de populismo reaccionário (Hoggett, 2018, disponível aqui).
Sendo a Psicologia ou Psicoterapia práticas que convidam o indivíduo a reflectir sobre si e sobre os outros, a aceitar a sua alteridade e consequentemente a dos outros, que convida a olhar para o envolvente, com consciência e com responsabilidade, não seria possível a sua existência numa sociedade regida por uma visão binária ou populista.
Um dos papeis da Psicoterapia na Sociedade, hoje e sempre, é de nos ajudar a não nos esquecermos do Eu, do Outro e também do Nós, em todos os processos de mudança.