Roubaram-nos o sonho, menino
Mais um ano, mais uma eleição, mais discursos vazios sobre a abstenção, e sobre a “geração mais qualificada de sempre” que vai decidir as eleições, tudo no preâmbulo dos longos debates sobre a governabilidade, claro. Demografia e habitação mal foram mencionadas, e o aumento do salário médio não passou de um rodapé.
Ouvi há uns meses um investigador septuagenário dizer numa conferência sobre juventude que a minha geração não tinha filhos mais cedo por causa das alterações climáticas. Eu diria que é por 72% dos jovens da minha geração receberem menos de 950€. Roubaram-nos o sonho. Hoje, um salário digno e um país que tente fixar a geração de que necessita desesperadamente são o novo castelo na areia. Não somos uma faixa etária de sonhadores, somos uma geração de precários que se divide entre os que teimam em ficar, e os que se resignam a emigrar.
Perante isto, e porque temas sérios podem ferir a susceptibilidade do leitor, tal como claramente incomodam a classe política, vamos à análise eleitoral. Foi-nos prometido em 2015 uma solução estável de esquerda, com companheiros ideológicos com uma missão clara: mais do que um projecto de dois partidos anti-direita e um grande partido de poder, um rumo novo para o país. Passados 6 anos, os partidos à esquerda não encontravam no Orçamento de Estado do Partido Socialista abertura ao diálogo, mesmo sendo considerado o Orçamento com mais cedências aos parceiros desde o início da solução governativa. O Orçamento foi chumbado, a Assembleia dissolvida, eleições foram convocadas. Passámos semanas a analisar quem seriam os culpados, e naturalmente o Partido Socialista vendeu bem o seu peixe.
Os parceiros à esquerda foram absolutamente penalizados nesta noite eleitoral, sendo engolidos pela conversa do voto útil. Estas últimas sondagens que fabricavam uma aproximação, e até chegaram a indicar uma possível vitória do PSD, deram o coup d’etat final à votação da CDU e BE, que foram esvaziados pelo PS, passando a quinta e sexta força política do Parlamento. É clara também a penalização dos partidos pelo chumbo do Orçamento, em que Costa enveredou pela narrativa de impedimento de aumento de pensões e contribuições sociais apenas e só pelo chumbo dos partidos à esquerda do PS. Este sentimento foi imortalizado na senhora que indicou não votar em Catarina Martins precisamente pelo chumbo, fazendo-o à boa maneira popular.
A maior desilusão da noite foi obviamente o PSD. Durante a campanha interna pairou a ideia de que Rui Rio seria o candidato de fora do aparelho, e por isso pouco popular internamente, que seria estrondoso com o eleitorado geral. Mas não foi isso que os resultados indicaram, tanto da campanha interna, como das legislativas. Acontece que o cacique partidário estava de facto com Rio, e que este não teve um bom resultado nas eleições legislativas. Na verdade, Rui Rio conseguiu a proeza de ter perdido todas as eleições a que se candidatou, menos as internas. Diz muito sobre o sistema interno do partido, e era importante pensar em alterá-lo.
Uma razão para celebrar é o resultado da IL. Mais do que triplica o seu resultado de 2019, em apenas dois anos, e cimenta um eleitorado base diverso, com grande expressão da faixa etária mais jovem. Devia servir de exemplo para o PSD, que achou razoável prometer uma baixa de IRC primeiro que a de IRS, e portanto perdeu muito eleitorado económico para a IL. A sua incapacidade de focar a mensagem no esforço fiscal português, e nos impostos indiretos regressivos, abriu caminho à perda de eleitorado que já não estava à partida seguro no PSD. A segunda razão para celebrar é a eleição do Livre, uma alternativa de esquerda moderada, ecológica e europeísta, na pessoa de Rui Tavares.
A lamentar profundamente é a eleição expressiva e o cimentar de terceira força política do Chega, um partido de extrema-direita, em que um dos seus novos deputados preenche o lugar de António Filipe do PCP. Diogo Pacheco Amorim, ex-membro do MDLP, uma organização terrorista de extrema-direita, é o novo deputado do partido. Não consigo colocar em palavras a dor que dá à neta de um anti-fascista escrever isto sobre um partido que tem como lema “Deus, Pátria, Família e Trabalho”.
Por fim, sabemos que um esquadrão de cavalaria à desfilada na Assembleia não esbarra num deputado do CDS. Parece que a teologia do Manuel Monteiro embrulhada num corpo de 30 anos e com um pin do Colégio Militar não chega para eleger-se a si mesmo como deputado do partido que esvaziou. Chicão demite-se, mas apenas depois de acabar com um partido histórico da nossa democracia, e entregar o voto rural á extrema-direita.
Regressando e terminando com temas sérios, o INE estima que em 2060 residam em Portugal 307 idosos por cada 100 jovens. Em Portugal, segundo a Eurostat, 25.8% dos agregados gastam mais de 40% do seu rendimento em habitação arrendada a preço de mercado. De acordo com o INE, o salário médio nacional é 1208€, e o salário mínimo 705€, sendo portanto 58% desse valor. É o 4.º salário médio mais baixo da União Europeia. Ainda, aliado a terem os salários mais baixos da Europa Ocidental, os portugueses pagam a 7.ª carga fiscal mais alta, calculada sobre o rendimento e ajustada para o custo de vida.
Posto isto, ou apesar disto, o Partido Socialista ganhou com maioria absoluta. Vamos ter esta maioria enquanto temos o PRR para ser aplicado, e sem uma expressão de direita vasta o suficiente para escrutinar a aplicação. Avizinham-se turbulências económicas, aliás já alertadas pelo ex-ministro das finanças socialista e atual governador do Banco de Portugal, Mário Centeno. Mas, como sempre, o povo votou, e esse voto é final.