Ai Costa, a política Costa!
Segunda maioria absoluta do PS na história, esquerda à esquerda perde, direita à direita ganha. E agora, Marcelo Rebelo de Sousa? Costa quis espreitar a saída para a Europa, mas fica senhorio do país mais quatro anos.
Ninguém queria eleições. Ninguém, como quem diz. António Costa e Marcelo Rebelo de Sousa quiseram. Do segundo, lá falarei. Vamos ao primeiro. Abanou o Orçamento de Estado no debate com Rui Rio, abanou a crise política aos parceiros da geringonça e abanou a maioria absoluta ao eleitorado. Tanto abanou, tanto abanou, que o vento do voto lhe fez o favor, a segunda maoria da história do PS, mesmo depois de ter largado a vontade na reta final da campanha. O PSD de Rui Rio perde pela quarta vez em eleições e lá se foi o voto útil. Convém repetir, em bom alemão: perdeu pela quarta vez. Agora, admite demitir-se. Talvez queira sair com a dignidade que pediu a Costa nesta campanha. E talvez queira perceber como é que deixou Chega e Iniciativa Liberal roubar-lhe o protagonismo de uma vitória que parecia — e só parecia mesmo — estar ali à espreita.
Vamos aos resultados. O primeiro grande derrotado desta noite é o novo coronavírus que, passa assim, a velho coronavírus. Em pandemia, já vamos na terceira eleição democrática e mesmo aí o povo (ou cerca de metade do povo) continua a querer ir a votos. E isso é bom. Muito bom. Não, o argumento de que “ninguém queria estas eleições” não cola caro (ainda) primeiro-ministro António Costa. Ninguém queria era continuar em pandemia e por isso é que, mesmo com um número recorde de casos diários, mesmo com um horário específico para infetados/isolados, metade do país quis fazer o que é chamado a fazer de quatro em quatro anos: ir votar.
O segundo derrotado, e agora numa nota pessoal, somos nós, os jovens. Porque discutiu-se muito pouco o nosso futuro. Nem inflação, nem PRR, nem habitação, recibos verdes, cultura, nem nada. É triste. O Expresso na sua última manchete dizia que “Jovens decidem Eleição”. Ora, se foram os jovens que deram esta vitória a António Costa, é bom que o primeiro-ministro os estime. Não creio que tenham dado. Não creio que estime. Nenhum primeiro-ministro o tem feito. Partindo de 2021, nos últimos 25 anos (e agora, em teoria, serão mais quatro), 18 foram governados pelo PS. Ainda tivemos os penosos anos da troika. Estaremos melhor? Um bocadinho. Estaremos melhor daqui para a frente? Receio que não.
História diferente são os resultados eleitorais. Ou será que não? A “festa da democracia” continua igual. Esta eleição teve um recorde de audiências nos debates televisivos, teve sondagens com empates técnicos diários, teve questionários nos jornais que meteram o primo afastado a descobrir que é liberal ao mesmo tempo que é capaz de ser também do PAN e teve outras semi-surpresas: a vitória clara de António Costa, o crescimento exponencial do Chega e da Iniciativa Liberal e o castigo eleitoral aos ex-parceiros da geringonça, Bloco de Esquerda e PCP. E claro, a eleição de Rui Tavares, azarado em atos eleitorais, mas agora finalmente Livre no parlamento. Quanto ao PAN, restará dizer que foi castrado. Portugal estará igual? Parece, o centro continua a reunir a maior parte dos votos. A esquerda à esquerda perde, a direita à direita ganha. Mas esta maioria absoluta ninguém esperava, foi, dir-se-á, tirada como um coelho (ou uma coelha) de uma cartola de um mágico.
Para esta análise mais ou menos jornalística não queria começar por aqui, mas vou ter de começar. E começo, porque todos começaram o que não deviam ter começado. Quando o PS ganhou as eleições sem maioria — e sem possibilidade à vista de nova geringonça — em 2019, um dos jornalistas perguntou a António Costa o que achava ele da eleição de André Ventura. O porquê da pergunta? Ninguém sabe. São 230 deputados e só um é que teve destaque — durante demasiado tempo. Agora não é um, são onze. Costa disse que não havia cá conversas com o deputado único do Chega.
Apenas dois anos volvidos, os dois, em pólos completamente opostos, foram-se usando como isco para cada um dos seus eleitorados, com um único objetivo: enfraquecer o PSD de Rui Rio. Ora toma lá anel de rubi, ora toma lá linhas vermelhas, extrema-direita e socialistas a jogar um jogo do desconfia eficaz. “Vou atrás de ti”, “comigo não passa”, toma lá dá cá. Conseguiram o que queriam. Pelo menos, o suficiente para o social democrata se enrolar numa bola de pêlo não se tornando no próximo primeiro-ministro e ficar só com a faca e o Zé Albino na mão. Quatro eleições, quatro derrotas, nunca é demais relembrar. Resta-lhe continuar a não fazer oposição e sonhar com o Bloco Central até se ir embora. Marcelo Rebelo de Sousa, que “provocou” as eleições, em vez de um sonho ganhou um pesadelo.
Com isto não estou a dizer que houve cá arranjinhos entre PS e Chega. O que seria. O líder socialista declarou-se, em entrevista à CNN a 25 de janeiro, “o inimigo número 1 do Chega”. Resultou. Esta teoria confirma-se quando olhamos para estas duas semanas de campanha. Os debates deram a percepção de um André Ventura repetitivo, com uma cassete contra corrupção e o RSI (Rendimento Social de Inserção), e quase sempre derrotado pelos “políticos do sistema”. Até o malogrado Francisco Rodrigues dos Santos, que apresentou a demissão esta noite, e que foi para a lama com o líder do Chega, foi ovacionado nas redes sociais. Fica a ovação, porque o partido vai para o caixão. Não elege. É histórico. Pelas piores razões.
Rui Rio que, mais uma vez, tinha começado mal para quase toda a gente, acertou o passo e começou fazer mossa a António Costa que, meio desorientado, lá pedia maioria absoluta quando o povo parecia ter certeza absoluta de que não a queria. PS em queda, PSD a subir. BE e CDU a assobiar para o lado, os restantes partidos a fazer pela vida. Num instante, tudo mudou.
Chegados à segunda semana de campanha, já com toda a bicharada na caravana mediática, Costa teve de esquecer o tal pedido de maioria — que até José Sócrates pediu para não desmerecer — e relembrar-se, já na reta final, daquela pergunta de 2019: quanto mais Costa atirava a extrema direita à cara de Rui Rio, mais voto útil ia buscar, mais a esquerda se assustava e votava no PS, mais a bravata de Rui Rio caía. Os moderados do PSD assustaram-se, quem é de esquerda ainda mais. Quanto ao crescimento do Chega, vem de “mão dada” com o de Iniciativa Liberal. Continuamos a apelidar todos os que votam no Chega de fascistas sem querer perceber o porquê de se virarem para o populismo, mas quanto à IL, a leitura é bem mais complexa.
Se perdi tempo com o primeiro, devo refletir bastante com o crescimento do segundo, que fugiu do bate boca entre estes três partidos e preferiu apresentar-se (bem ou mal, é toda outra discussão) com uma proposta liberal para o país. O crescimento destes dois partidos pode-se explicar pelo definhamento da direita tradicional. Certo. O CDS em 2011 teve 24 deputados, quase o mesmo número que estes dois novos partidos podem vir a ter. O crescimento dos dois vem no seguimento de um chumbo do OE, que o eleitorado de esquerda parece não ter gostado. Vem no seguimento da oposição feroz que fizeram às medidas de combate à pandemia. Se isso contou? Ainda não se sabe. Alguém que faça uma sondagem. Mas a IL tem uma história recente bem diferente. É, neste momento, a terceira força política em Lisboa e no Porto. Um Bloco de Direita do Padel. Perdão. Claro que é mais do que isso. Diz-se para os jovens, diz-se farta do socialismo, e quis meter o país a falar de flat tax e da TAP. Com 600 páginas de programa ou com outdoors. Resultou.
Costa diz agora, na sua “vitória humilde”, que “maioria absoluta não é poder absoluto”. Não é. Mas, pelo menos na história recente, é a primeira vez que os socialistas crescem com os partidos à esquerda a cair. É a primeira vez que vamos a eleições dois anos após uma pandemia e o povo português dá uma maioria absoluta a um partido e reforça a posição de dois partidos à direita do PSD. E é a segunda vez que vemos um presidente da República de direita com um governo de maioria absoluta de esquerda — José Sócrates e Cavaco Silva. Neste momento, há 129 deputados à esquerda, 91 à direita, um do PAN. Em 2019: 86 à direita, 130 à esquerda. Quatro do PAN. Agora, a bola está do lado de Marcelo Rebelo de Sousa que até disse no Dia de Reflexão que queria outro rumo. Ou mais estabilidade. Ora aí está.
Uma última nota para isto. Incêndios de Pedrógão Grande. Escândalos com Eduardo Cabrita. Tancos. Fim da geringonça. Um primeiro-ministro muito apanhado no polígrafo. PSD partido. CDS desaparecido. Grande escrutínio — e palco — ao Chega. PAN a ser nem carne nem peixe. Livre, aliás, Rui Tavares, a ter, finalmente, a sua oportunidade. IL a crescer. Pandemia. Pandemia. Pandemia. Memória curta? Excesso de informação? De ruído? Fake News? Ou estamos todos na mesma? Bom, e Costa? Pode estar perto de governar tantot tempo como Cavaco Silva. Ai Costa, a política Costa…