A festa da democracia
Chamados a votar os portugueses aceitaram o desafio, independentemente do aumento dos casos, e da incapacidade do governo em orientar uma solução eficaz para quem estivesse confinado, não tiveram medo do COVID, mas foram vencidos pelo medo ao vírus da extrema-direita. Foi uma noite de festa para uns, de tristeza para outros, mas os portugueses definiram o dress code para os próximos anos: Rosa. Nos próximos quatro anos iremos andar todos de rosa mesmo os que não queriam assim tanto, isto porque o PS venceu com maioria absoluta. Teremos ainda na festa mais elementos da banda que só tem uma música no repertório: a do racismo e xenofobia; e houve quem desta vez marcasse com o “não vou”. Foi assim a festa da democracia. Mas já lá vamos.
Em 2015, quando os partidos de Esquerda decidiram unir-se entre si para colocar fim às políticas austeras de uma direita que só não cortou um braço a cada português, porque, acredito eu, seja inconstitucional, formando aquilo que Paulo Portas viria a adaptar de Vasco Pulido Valente e a batizar, em contexto político, de “geringonça”, deixou-nos uma certeza, independentemente dos resultados, que se houver entendimento entre os partidos, o partido que forma governo não tem de ser necessariamente o mais votado. Ficou-nos isso.
O entendimento que houve nesse ano, permitindo-nos ter pela primeira vez uma maioria de esquerda no parlamento português falhou quando chegou o momento de aprovar o orçamento para o ano 2022 e precipitou-nos para umas eleições antecipadas, desejada pelo primeiro-ministro e patrocinada pelo Presidente da República. Era o fim da geringonça tal como a conhecíamos. Eu que já tinha perdido as minhas referências de casamentos felizes: Brad Pitt e Angelina Jolie; Ana Galvão e Nuno Markl; perdia mais uma. António Costa não esperou muito até definir de quem era a culpa da falha de comunicação que tinha culminado no fim desta relação, e pelos vistos, a culpa era da mulher. Da Catarina, e do Bloco de Esquerda. Sempre me disseram que não é de confiar num homem que chama de louca à ex. É uma red flag, ou lá como se diz agora. Mas se o Costa não teve problemas em culpar os antigos parceiros da geringonça do fim da mesma, já esses antigos parceiros, o Bloco de Esquerda e o PCP, nunca conseguiram sacudir essa água do seu capote, e explicar de forma clara porque é que tinham optado por votar contra o orçamento, num contexto de pandemia. Pelo menos de forma que não os fizesse perder votos. Tal como nunca souberam explicar porque é que se devia votar neles. Não souberam fazê-lo e o resultado está à vista.
António Costa começou por pedir maioria absoluta porque seria sinónimo de estabilidade política que o país precisava, dizia ele. A meio caminho fez marcha-atrás, recuou no pedido, alegando que os portugueses não gostam de maiorias, no final os portugueses deram-lhe a maioria. Diz-se que no futebol é onze contra onze e no final vence a Alemanha, nestas eleições foi António Costa contra Costa e no final venceu António Costa. Agora percebo quem diz que o Costa é um verdadeiro político. Mas fica a ideia que se os portugueses pudessem combinar entre em quem votar Antónia Costa não teria tido maioria. Num país, onde infelizmente, existem tantos lesados, veremos se não há por aí os lesados do voto útil.
Animais há muitos, seu palerma!
Por ter interrompido uma legislatura a meio, e com isso ter colocado fim a uma parceria que chegou a dar bons resultados, pelo contexto pandémico que abala o país e o mundo, pelo receio de sermos chamados novamente num curto espaço de tempo a eleições, por um ex-primeiro-ministro que se mostrava irredutível na sua vontade de aprovar o mesmo orçamento que fez cair o seu governo, pelo receio de uma maior presença da extrema-direita no parlamento, pela expectativa se teríamos novamente uma geringonça de esquerda, de direita, ou se desta vez acrescentaríamos um “eco” antes, criando uma “eco-gerigonça”. Por tudo isto estávamos perante uma das eleições mais importantes dos últimos anos, onde era importante refletir sobre o presente e discutir o futuro. Mas não foi o que aconteceu. Os candidatos decidiram falar dos seus animais domésticos, o que fez com que sobrasse pouco tempo para os jovens, para os problemas da habitação, para os artistas, a cultura, o envelhecimento do país, os baixos salários, os trabalhadores precários, e acima de tudo, perceber como sairíamos desta pandemia. Mas, pelo menos, ficámos a saber que existe um Zé Albino, uma coelha Acácia, uma cadela Bala, um gato que é o Camões. Não é pessoal mas fico triste que o gato do doutor Rui Rio tenha tido mais tempo de antena que os meus problemas enquanto artista. Animais há muitos, problemas no país também, seu palerma.
Voto útil VS Voto livre, sondagens
Sempre que somos chamados a votar vem até nós a conversa do “voto útil”, com cada candidato a assumir que o voto útil é o voto no seu partido. É uma conversa recorrente que apenas beneficia os grandes partidos. PS, que o diga nestas eleições. A verdade é que o voto útil limita a consciência do eleitor, que acaba sempre por depositar o seu voto onde acha que fará alguma diferença. À boleia das sondagens — desde as eleições para a Câmara de Lisboa que percebemos como podem ser enganadoras, e podem influenciar os resultados. Os eleitores tendem a aderir quando sentem que o seu voto pode ser decisivo.
Segundo responsáveis pelos três centros de sondagens que trabalham com a RTP (CESOP-UCP), SIC (Eurosondagem) e TVI (Intercampus) os resultados das sondagens pré-eleitorais influenciam a ida às urnas e a opção de voto de parte do eleitorado. (“As sondagens influenciam?”; Laboratório de Opinião Pública, 2018). E apoiados num sistema político que muitas vezes confunde o eleitorado que, enquanto julga estar a votar para o primeiro-ministro, não percebe que a escolha é em quem irá representá-lo na casa da democracia. E mesmo essa escolha não é feita em consciência porque quase ninguém conhece as listas propostas pelos partidos para os seus círculos, quanto muito conhecem os cabeça de listas. Esta impessoalidade do voto muitas vezes afasta o eleitor do momento de decisão, ou faz com que acabe por votar na única cara que conhece, aquela que mais vezes aparece. A conversa do voto útil pode resultar em maiorias absolutas sem que essa tenha sido a vontade inicial de quem decidiu votar no partido que acabou por obter a dita maioria. Talvez não seja má ideia rever o sistema eleitoral, e pelo meio façam uma pausa das sondagens. Enquanto se grita voto útil há quem deixe de votar de forma livre.
Vencedores e vencidos
PS — O grande vencedor da noite é obviamente o PS. Que vê a sua posição reforçada com uma maioria absoluta. A quarta da história da democracia portuguesa e a segunda do partido num espaço de 17 anos. Costa conseguiu convencer as pessoas que votar à Esquerda é votar no PS. Costa não só culpou o Bloco de Esquerda das eleições e no final ficou-lhe com os votos. Ágata, na música comunhão de bens, cantou “Podes ficar com as jóias, o carro e a casa / Mas não fiques com ele.” Nesta comunhão de bens política, António Costa ficou com o orçamento, com a maioria, com as jóias, carro, tudo. E mais houvesse, mais ficaria. Foi realmente uma jogada de mestre do Costa: foi às eleições, venceu, livrou-se da geringonça, e afastou de vez o Zé albino da ribalta. Ao todo serão dez anos de António Costa como primeiro-ministro. É muita fruta.
PSD — O partido do Zé albino foi um dos grandes derrotados da noite. Rui Rio nunca se conseguiu assumir como uma alternativa credível à Direita. Rio apresentou-se como um homem sério e impoluto e por isso a pessoa ideal para estar à frente do país, mas por outro lado, nunca conseguiu ser sequer consensual dentro do seu próprio partido. O antigo presidente da câmara do Porto nunca conseguiu assumir de forma taxativa que nunca faria acordos com a extrema direita (Açores não era um bom indicador), aliás, tentou sempre convencer o seu eleitorado que conseguiria fazer o André Ventura moderar-se. Aliás, a noite de ontem foi trágica para Rio porque por várias vezes tentou branquear o CHEGA, na esperança de ter um parceiro e de nada lhe valeu. É como emprestares roupa ao teu melhor amigo quando vão sair e ele engata e tu voltas para casa de mãos a abanar. Durante a campanha Rio pediu a Costa que perdesse com dignidade, pena o próprio Rio e os militantes do PSD não terem seguido a receita quando impediram jornalistas de fazerem o seu trabalho. Ficamos a saber que o Rui rio quando se irrita diz coisas em alemão. Lá vai o PSD novamente às eleições. Curioso como o PSD tem ido nos últimos tantas vezes às eleições e tem perdido sempre. Em suma, houve claramente uma maioria que se recusou a pisar linhas vermelhas da democracia para evitar uma direita com CHEGA.
CHEGA — Se um esquadrão de cavalaria à desfilada não esbarra contra uma ideia na cabeça de André Ventura, vai esbarrar certamente contra vários deputados do CHEGA na Assembleia. CHEGA ultrapassou pela direita e chegou ao terceiro lugar. O seu líder André Ventura tanto prometeu que lá conseguiu, Chega é a terceira força política, ficando à frente do BE, do PCP-PEV, CDS-PP, PAN, tudo partidos que nas eleições de 2019 tinham ficado à sua frente, quando o partido de André Ventura obteve 1,29% (67.826 votos), nestas eleições obteve 7,15% (385.559 votos). Um crescimento exponencial. E preocupante. Ao partido de um homem acrescentou-se mais 11. Ao todo serão 12 deputados racistas e xenófobos na Assembleia. Enquanto se alguns candidatos decidiram entreter-nos com fotos dos seus cães e gatos o partido dos abutres cresceu e, pasme-se, há quem esteja surpreendido. Talvez este seja o momento de percebemos que assumir que os 7,15% dos portugueses que votaram CHEGA são fascistas e todos os outros são antifascistas é um discurso que até pode dar likes nas redes sociais, mas pouco mais que isso. Assim como é errado assumir que todos que votaram CHEGA são ignorantes.
Ora vamos fazer um pequeno exercício: nas eleições de 2019, em Sintra o CHEGA obteve o resultado de 2,50% – 4,190 votos; o Bloco de Esquerda – 11,15% – 18, 678 votos; CDS-PP – 3,52% – 5,890 votos. Nestas eleições de 2022, ainda em Sintra o resultado foi o seguinte para os mesmo partidos; CHEGA – 9,66% – 17, 824; Bloco de Esquerda – 5,33% – 9,834; CDS – PP – 1,32% – 2, 433. Agora, em Alvalade, em 2019; CHEGA – 1,25% – 246 votos; Bloco de Esquerda – 8,39% – 1.657 votos; CDS – PP – 7,68% – 1.518 votos. Observemos agora o resultado para as eleições de 2022, para os mesmos partidos: CHEGA – 4,96 % – 1.036 votos; Bloco de Esquerda – 4,23 % – 882 votos; CDS – 2,91 % – 608 votos. Continuemos, agora em Belém, em 2019; CHEGA – 1,29% – 124 votos; Bloco de Esquerda – 6,55% – 628 votos; CDS – PP – 11,04% – 1.059 votos. Observemos agora o resultado para as eleições de 2022, para os mesmos partidos: CHEGA – 5,67 % – 559 votos; Bloco de Esquerda – 3,10 % – 306 votos; CDS – PP – 3,76 %371 votos. Por fim, Marvila, resultados de 2019: CHEGA – 2,29% – 382 votos; Bloco de Esquerda – 10,91% – 1.821, resultados para as eleições de 2022: CHEGA – 9,62 %- 1.707 votos; Bloco de Esquerda – 5,10 % – 904 votos. Decidi focar-me no resultado destes dois concelhos de Lisboa, e na freguesia de Marvila, porque há quem caia na tentação de associar o voto fora de Lisboa a um voto ignorante e irresponsável. Há uma parte do país que se sente órfã do Estado e encontra no CHEGA e nos discursos do seu líder um aconchego e isso, mais do que preocupar-nos a nós, deve preocupar a quem pode realmente mudar o rumo dos acontecimentos.
No entanto, este resultado deixa-nos com uma falsa ideia do crescimento do CHEGA. Se comparamos com o resultado das presidenciais o partido perdeu mais 100 mil votos. Por exemplo, se comparamos igualmente com o Concelho de Sintra, o partido de André Ventura teve menos 2766 votos de umas eleições para outras. Ainda assim, é preocupante, e a presença de tantos deputados de um partido da extrema-direita, quando até 2015 não havia nenhum, é a prova que não podemos continuar a marginalizar quem precisa de ajuda.
Em suma, o voto útil do PS, e uma diaboalização permantente dos antigos parceiros, por parte do PS, uma direita não se consegue assumir como uma verdadeira alternativa, o que se traduz na incapacidade do PSD em dar luta, o desaparecimento do CDS, contribuiu para o crescimento do CHEGA. Se o dia que antecede as eleições serve para a reflexão depois da noite de ontem precisamos de um longo período para reflectir. Ironicamente, os maiores vencedores da “noite da democracia” são claramente os maiores inimigos da democracia e que a querem derrubar. Venceu desleixo da classe política com quem várias vezes mostrou precisar deles.
CDS — Em 2018 a Forbes Portugal escolheu o Chicão como um dos “30 jovens mais brilhantes, inovadores e influentes da Europa”. Lá inovador ele foi, conseguiu destruir um partido com um longo percurso na democracia portuguesa. O CDS passou de partido do táxi ao partido do tapete voador. Voou da Assembleia para fora. Desapareceu. E ninguém pode ficar feliz com isso, independentemente dos valores políticos que defende. Até porque a tendência é para piorar. Com o desaparecimento do CDS, queda do Bloco e do PCP, e crescimento do CHEGA, vão ser tempos difíceis. Chicão surgiu visivelmente triste e abatido para discursar, o que é normal, quando perdeu parte do seu eleitorado para um tipo que diz ser o quarto pastorinho de Fátima, e perdeu outra parte para um tipo que quando se irrita diz coisas em alemão, como se fosse uma personagem dos Monty Phyton. CDS saiu assim do parlamento, e o Chicão lembra-me o meu eu em criança, em baptizados, quando tentava meter conversa com as primas e no final acabava sozinho. Talvez não tenha sido boa ideia tentar seduzir parte do seu eleitorado com cocktails. Trabalhei num bar e sei que a dada altura as pessoas querem outro tipo de bebida.
Tanto o Bloco de Esquerda como o PCP foram os grandes derrotados da noite. Catarina Martins não teve problemas em assumir logo a derrota (que remédio!). Nunca conseguiram explicar porque é que votaram contra o orçamento, nunca conseguiram defender-se dos ataques de António. O Bloco de Esquerda perdeu mais de metade dos deputados, e o lugar da terceira força política, mas na sede de campanha gritou-se “não passarão” (numa alusão à extrema–direita). Alguém que lhes diga que já passaram, e aos montes. Está na hora de se atualizar a música. Já o PCP perdeu os deputados como o João Oliveira e o António Filipe. Perdeu o PCP e perdemos todos. Tal como Catarina Martins, Jerónimo de Sousa disse, no seu discurso, estar pronto para combater o crescimento da extrema-direita.
A Iniciativa Liberal passou de um para oito deputados, ocupando o quarto lugar na lista dos principais partidos. De tanto repetir que liberalismo funciona e faz falta a Portugal João Cotrim Figueiredo conseguiu convencer 4,98% do eleitorado. Ao observar o crescimento da IL fica a ideia de que há demasiada gente a ler o livro “Pai Rico, Pai Pobre”, best-seller de Robert Kiyosaki e Sharon Lechter. Enquanto António Costa acenava um orçamento, houve um eleitorado jovem que optou por votar em que lhes acenasse com o crescimento económico. Talvez o primeiro-ministro não deva ignorar por completo esta mensagem.
O LIVRE elegeu finalmente o Rui Tavares. Finalmente os intelectuais de esquerda vão se sentir representados, tal como os progressistas órfãos do Bloco.
PAN tantas vezes disse que tanto se deitaria na cama com a esquerda ou com a direita, e por pouco não foi posto fora de casa.
Por fim, uma palavra para a ex-deputada Joacine Katar Morreira, que nos mostrou que ainda existe um longo caminho a percorrer no combate ao racismo, xenofobia e preconceito. Joacine foi perseguida, enxovalhada e insultada. Fartou-se de apanhar sozinha. Mas nunca desistiu de lutar. E espero que um dia mais tarde consigamos reconhecer o quão importante foi para este país. Da minha parte fica um sincero agradecimento. Pela primeira vez senti-me verdadeiramente representado. Um grande obrigado Joacine. Uma nota também para a deputada Beatriz Dias que não foi eleita. Passamos de três deputadas negras para uma, e de um deputado racista para 12. É simbólico e vale o que vale. E vale muito.
Dança de líderes
PSD, CDS, provavelmente o PCP e o BE irão a eleições internas no futuro. Veremos que alternativas terão para o país. O país precisa de uma esquerda forte, de preferência uma esquerda que não se concentre no PS.