A namorada perfeita

por Pedro Saavedra,    10 Fevereiro, 2022
A namorada perfeita

Era uma experiência. Ela não tinha nada de melhor para fazer e assim respondeu ao anúncio com que se tinha cruzado na rede. Tinha estudado, estava desempregada e os seus índices de criatividade estavam abaixo da média. Já ninguém ligava a habilitações ou currículos, importante era o índice de criatividade. Lá, como aqui, as relações humanas e o trabalho em rede era o que fazia a diferença, mas Alice não tinha nem uma nem outra. Era como se dizia, normal, comum. Não era feia mas também não se destacava na multidão, muito menos fazia alguém virar-se para trás. Habitava sozinha seis metros quadrados com a confiança de que era assim que tinha sido e era assim que iria ser sempre. Sozinha, sem ocupação, mas com tanto para dar. (Pensava)

Viviam-se os meses da pluviosidade excessiva e isso agudizava ainda mais a sensação de afogamento que sentia. Tinha feito várias consultas e os médicos que falavam com ela através da rede repetiam sempre o mesmo: a depressão não aparece de um dia para o outro, é algo que se vai instalando demasiado devagar para deixar aviso, é como afogar-se muito lentamente. Quando reparamos nela, já é profunda e intratável; a menina tem é que arranjar companhia! E era isso mesmo que dizia aquele anúncio que lhe piscava agora no ecrã: Tens companhia para dar? Precisamos de pessoas como tu! Para quê pensar mais nisso, assinalou o quadradinho que garantia que não era um robô, deixou-se analisar pelo leitor de retina e já com a assinatura no documento, recebeu a confirmação: AMANHÃ PELAS DEZANOVE HORAS. NÃO TRAGA BAGAGEM.

Estava no dia seguinte ou até no primeiro dia do resto da sua vida, como estava escrito na entrada da Universidade Estatal Vinte e Três que tinha frequentado. Quando lá passou pela primeira vez, a inscrição no pórtico abriu-lhe os olhares e alinhou-lhe as convicções. Tudo, naquela altura, valia a pena, e tudo seria possível desde que acreditasse mesmo. Acreditar em Nós Próprios III foi o seu seminário preferido. Sem professor ou mestre na sala, pesquisavam o que entendessem na rede, comentavam o que entendiam e no final trocavam impressões baseadas nas crenças pessoais de cada um sobre todos os assuntos possíveis e imaginários. Nunca tinha acreditado tanto em si mesma e isso fazia ainda mais sentido agora. Fez-se ao caminho com a sua gabardine transparente preferida e encarou os tons de cinza da rua e dos transportes que a levaram, de elevador em elevador, até ao centro. O sol desfalecia, e a sua parte preferida do dia começava: a noite. Tudo começava a fazer sentido e nada do que tinha vivido antes seria de menos para a sua convicção. Ali estava à porta do Centro da Companhia e, estranhamente, sentiu uma pequena dúvida inesperada. Como será a companhia que irão escolher para mim? Mas isso passou logo quando sentiu que acreditava em si própria e que poderia ser a melhor namorada perfeita.

Alice tinha-se inscrito numa agência de companhia. Homens solitários, mulheres solitárias, não-binários, bisexuais, transgénero, híbridos e todos os que pudessem precisar de companhia usavam o serviço para a conseguir encontrar. E a procura era cada vez maior, parecia que era cada vez mais difícil encontrar o par ideal por iniciativa própria. O ser humano tinha evoluído para uma submissão emocional e uma insegurança nas artes da sedução que fazia com que precisasse mesmo de ajuda na demanda que nos milhões de anos precedentes tinha sido coisa do natural. Mas também era natural pedir ajuda! Pensava, Alice, enquanto cruzava as portas de vidro que davam acesso ao alojamento de espera. O Centro proporcionava as melhores condições a quem a ele se candidatava como candidato a companhia. As melhores consultas médicas, a melhor nutrição, os melhores técnicos de motricidade e tantos mais etc’s que são demasiados para serem enumerados. Alice estava feliz. Tinha tudo o que precisava e tinham-na colocado num habitáculo individual muito confortável. Dormia sozinha mas nas sessões de preparação tinha toda a companhia do mundo. Ali estava rodeada de mulheres e homens como ela, todos a precisarem de companhia, estavam finalmente felizes, só faltava alguém os escolher, serem escolhidos, e a sua vida poderia finalmente ser verdadeiramente a da namorada perfeita.


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