Rui Poças: ‘No cinema português existe uma certa dose de loucura que integra a fantasia com frequência’
Rui Poças é um dos diretores de fotografia mais creditados do nosso mercado. Se não mesmo o maior. O seu trabalho fala um pouco por si, sobretudo quando é associado a nomes como Fernando Lopes, Fernando Matos Silva e sobretudo ao acompanhamento da carreira de João Pedro Rodrigues ou Miguel Gomes, por exemplo. Aliado, lá está, a uma diversificação pelo cinema da América Latina, não só por convites do Brasil como da Argentina e do Uruguai.
Encontrámo-lo no festival de Locarno, a assegurar o trabalho do premiado As Boas Maneiras, de Marco Dutra e Juliana Rojas, numa produção de género e com meios, a aflorar os limites do horror, e ainda a garantir ainda a fotografia de Severina, do brasileiro Filipe Hirsch. Para além disso, levará em breve ao festival de Veneza o novo filme da argentina Lucrecia Martel, Zama, onde será apresentado fora de competição. Mas há mais. Foi então neste momento de particular da sua carreira que aproveitámos para perceber por onde passam os caminhos do cinema deste diretor de fotografia em alta.
Rui, com dois filmes aqui em Locarno não te podes queixar de falta de trabalho… Como encaras esta presença?
Nos últimos três anos tenho feito algum trabalho de monta na América Latina. Particularmente na Argentina e sobretudo no Brasil. Por sorte, neste festival foram incluídos dois filmes em que trabalhei: um é o Severina, que filmei o ano passado, uma co-produção uruguaia e brasileira, que filmámos no Uruguai. E o As Boas Maneiras, que também filmámos o ano passado em São Paulo. Tem calhado. Tenho tido bastantes convites para trabalhar no Brasil e tenho tido a sorte para trabalhar em projetos interessantes, como estes dois.
No caso de As Boas Maneiras em que estou mais à vontade, pois não vi ainda o Severina, houve algum desafio em particular?
O As Boas Maneiras é um filme que parte do conhecimento de filmes de género, em particular do fantástico e do terror. O Marco e a Ju têm um percurso, quer individualmente quer em parceria, muito próximo do género fantástico. Quando me convidaram, uma das propostas foi trazer para o cinema fantástico, mas para trazer outras coisas mais. É um filme de género, mas também um filme social, uma fábula. Quando começamos a trabalhar no filme tivemos em atenção várias cinematografias, como a Disney, o Jacques Tourneur, que por coincidência é alvo de retrospetiva aqui em Locarno; falamos também de outros filmes como A Noite do Caçador, de alguma pintura, etc.
Para ti é importante haver este tipo referencial para o teu trabalho?
Formalmente, não sou muito de me apegar a coisas já feitas. Mas as referências, sejam elas quais foram, de cinema, de pintura, de música, são sempre interessantes para chegar a um terreno bom para comunicar. Neste caso, são dois realizadores mais um diretor de fotografia, são três pessoas a falar. É bom que se estabeleça deste o início uma linguagem comum para chegarmos a algum lado.
Como avalias este tipo de trabalho em particular? O que te trouxe à tua careira?
Para mim, é muito raro fazer um filme que tenha características de blockbusters, com muitos efeitos especiais. Quer CGI, imagens feitas em computador, como muito green screen, chroma key, tem muitas personagens vestidas com o fato verde para ‘pintar’ depois, tem robótica. Não são filmes que normalmente faça. Nesse sentido, foi muito interessante. Mas uma das coisas que o filme tem e que é muito visível é uma técnica que é o matte paiting, que era uma técnica muito usada nos anos 50, com a integração de pintura nas imagens fotográficas. O que se tem feito há 30 anos para cá é o uso de chroma key, em que se vai buscar uma imagem de arquivo para meter num fundo, por exemplo, substituindo uma tela verde por isso. O matte painting, no tempo analógico era feito numa pintura num vidro e era filmado. Hoje em dia já não é necessário fazer isso, é mais simples fazê-la digitalmente. Mas pressupõe sempre a integração de uma imagem que foi pintada.
Neste caso permitiu recriar uma São Paulo que não existe…
Que não existe. E que tem características que não são reais. Portanto, esticar a corda do lado fantástico e surpreendente de uma cidade que não existe. Para mim, foi muito interessante fazer isso. Era algo que nunca tinha feito. Gosto muito de fazer coisas muito diferentes que não tenham nada ver com o que fiz antes.
Algo menos explorado no cinema português?
Talvez, se bem que no cinema português existe uma certa dose de loucura que integra a fantasia com frequência. Por exemplo, os filmes do Miguel Gomes sempre foram assim.
O próprio João Pedro Rodrigues, no seu Ornitólogo também tem alguns desses elementos…
Exatamente. O Ornitólogo é um filme que pressupões do espetador a admissão que está a entrar num território que não é a realidade completa. Isso a mim, como diretor de fotografia, é um presente. Para mim como criador de imagens é muito estimulante fazer a integração de um manancial do conhecimento que o espetador já tem e evocar outras imagens para poder ler imagens novas. É o que acontece neste As Boas Imagens e também em O Ornitólogo.
E onde integraríamos o Severina?
O Severina é um filme melancólico, sobre literatura. É a adaptação de uma novela que existe. Mas na rodagem só eu e o realizador, o Filipe Pires, falavam português. De resto, era como um filme latino-americano. Nem sequer se pode dizer que seja um filme uruguaio. É um filme romântico, sobre os livros, de os ter. Do objeto livro no século XXI. Foi muito interessante porque era um filme muito delicado. Para mim foi um desafio.
Também do ponto de vista técnico?
Sim, talvez. Por norma os planos raramente param, são planos sequência. A história faz um arco do dia para a noite. Começa solar e vai para a noite, mesmo sem deixar de ser melancólico. O lado dessa luz solar melancólica serve bem os propósitos do filme.
Ao consultar a tua atarefada filmografia vejo que tens aqui o Zama, da Lucrecia Martel, vai a Veneza, suponho…
Sim, passa fora de competição. O que te posso dizer, para um diretor de fotografia trabalhar como uma pessoa como a Lucrecia Martel é um desafio tremendo. Isto porque o ponto de vista criativo dela parte normalmente do sim e não da imagem. É um desafio tremendo. Como realizadora é incrível, tem um pensamento muito fora do comum.
Depois tens o filme do Vivente Alves do Ó, o Al Berto…
Sim, é um filme sobre a parte em que ele regressa de Sines, quando ele regressa de Bruxelas para Portugal, mas antes da parte da vida dele em que se fixou em Lisboa. É uma biopic, é um filme de atores basicamente.
O que tens mais no pipeline?
O que tenho mais? Fiz este ano um filme do Ali Muritiba, que é um filme cuja temática tem a ver co um bullying. Chama-se Ferrugem. Ainda não está pronto, mas vais ficar para os festivais do primeiro semestre… If you know what i mean (risos)… Tenho outro filme que está a ser finalizado e que consegui que convidassem o Vasco Pimentel para a equipa. Consegui que ele entrasse já na pós-produção para meter ali o dedo dele no som. Acho que vai fazer toda a diferença. Chama-se Hilda Hilst Pede Contacto, uma escritora fantástica que faleceu há uns anos e que vai agora ser recuperada e vai-se falar muito dela.
Só para terminar, não tens parado de trabalhar apesar de se falar sempre da crise e do mal em que está o cinema português. Mesmo estando mais por fora acompanhas o que se vai passando?
Olha, tenho estado muito distraído. Tenho estado dez meses fora de Portugal. É claro que gostaria de inverter isso um bocadinho. Para já, gosto muito do país onde vivo. Sou português e vivo em Portugal. E gosto muito de filmar em Portugal e dos filmes que tenho feito. Só não tenho feito mais filmes em Portugal, porque o timing é normalmente mais apertado do que estes convites que me têm feito. Acaba por ser difícil gerir isso. Por exemplo faço todos os anos duas ou três curtas. Faço questão, não só para sentir que continuo vivo. E para me exercitar a fazer com pouco. Para mim é fundamental. Tenho alguns filmes portugueses em breve para fazer – acho que nem preciso de dizer quais – e quero muito fazer filmes portugueses, quero mesmo muito. Em Portugal às vezes pensam que por eu fazer muito filmes no estrangeiro que já passei para cinturão negro e que já não quero nada com eles. Não sou nada desse género. Quanto ao cinema português tenho estado um pouco desatento; tenho percebido algumas dificuldades que tem a ver com financiamentos. Não tenho muito conhecimento e confesso que não é muito a minha praia.
Entrevista de Paulo Portugal, publicada no nosso parceiro Insider Film