HAVEN KBH: No reino da Dinamarca, Iggy Pop foi rei, e os The National senhores
O festival HAVEN em Copenhaga (Dinamarca) teve a sua primeira edição de sempre nos dias 11 e 12 de Agosto. Organizado pelos irmãos Dessner, dos The National, Claus Meyer, e pela cervejeira dinamarquesa Mikkeller, o HAVEN tem, como premissa, oferecer uma experiência multissensorial, através da música, artes performativas e gastronomia.
Já há muito que acompanhamos quase todos os esforços de Aaron e Bryce Dessner nestas experiências. Além do festival Eaux Claires (onde estivemos na primeira edição), Music Now em Cincinnati e Boston Calling, estiveram também entre os mais de 80 músicos que se juntaram para uma semana de experiências em Berlim, que culminou no evento Michelberger Music (onde também estivemos). Este último evento foi marcado pela quantidade de cenários improváveis, a começar pelo facto de não sabermos quem íamos encontrar na sala, e à hora que nos era destinada, consoante a pulseira que tivéssemos. Parece ter sido esta capacidade (ou vontade) de improvisar que ficou no sangue do núcleo duro dos irmãos Dessner, e onde se inclui Justin Vernon, Ragnar Kartjansson, Matthew McCaughan, entre outros. Foi atrás destas experiências que fomos a Copenhaga.
O primeiro e segundo dias do HAVEN KBH começaram com o projecto Big Red Machine, uma colaboração de Aaron Dessner e Justin Vernon, que conta, também, com a colaboração de outros músicos que se vão alternando. O ambiente é de improviso, com Justin Vernon na voz e guitarra e Aaron Dessner na guitarra. Sem efeitos na voz, Justin Vernon canta de forma que recorda os seus primeiros registos ou The Shouting Matches, porém com uma tonalidade bastante menos rock, quase blues, quase jazz. Não sabemos se este projecto irá além das actuações que os dois músicos têm feito em festivais nos quais são curadores (fizeram-nas em Eaux Claires), mas o que ouvimos promete e estaremos bastante atentos ao que virá por aí.
Também estiveram presentes os Band of Horses numa actuação marcada pelos problemas de som, mas que não deixou de fora os grandes sucessos da banda como “No One’s Gonna Love You” ou “Funeral”. A banda, que esteve no NOS Alive, lançou um novo álbum este ano, e foi neste que baseou a sua actuação. Não sendo um mau concerto por demérito próprio, não conseguiu agarrar o público da forma como a própria banda merece.
Corremos depois para o palco secundário, Mindfield, para vermos Lisa Hannigan, que entrou a capella para mostrar imediatamente a belíssima voz que tem, sem quaisquer reticências nem nervosismos. A restante banda entra depois em palco, com Aaron Dessner na guitarra (foi o produtor do último trabalho da cantora, “At Swim”). O registo com que pautou o concerto não diferiu grandemente do habitual, e quem conhece a obra de Lisa Hannigan sabe o que esperar. Um show de folk music bem construída, uma voz angelical e temas de intensidade dramática crescente.
Foi na passagem para o palco principal que nos deparamos com um grupo de músicos, entre os quais membros dos Bon Iver, a fazer uma experimentação electrónica, que. infelizmente, não conseguimos definir muito bem. Visualmente falando, eram 4 músicos a mexer numas caixas de sons, mas o que se ouvia era uma sucessão de sons, sobreposições, amálgamas, que, mesmo estranhos, faziam sentido e se tornavam bastante agradáveis. Este tipo de colaborações e de improvisos iam aparecendo por todo o festival.
Porém, o primeiro dia do festival foi do Iggy Pop. Sem parecermos extremistas, um minuto depois de Iggy Pop ter entrado em palco, já o público estava totalmente rendido. Começando com “I Wanna Be Your Dog” e “The Passenger”, o músico, de 70 anos, pareceu querer dar uma lição a esta gente mais nova que dá uns concertos, mostrando como é que se faz, como é que se agarra o público, e como nunca o deixa fugir. Durante uma actuação com 14 temas, não houve vivalma que tivesse ficado indiferente. Iggy Pop optou por fazer um concerto que honra mais o seu passado, e não se focou muito no álbum do ano passado, “Post Pop Depression”. Ainda assim, uma lição de rock, de punk, de música que o consagra como um dos ícones da música destes dois séculos. Terminou em apoteose com “Real Wild Child”, e a assinar, provavelmente, o concerto do festival.
A noite, no palco principal, haveria de encerrar com Beach House, que lançaram um registo há algumas semanas, mas não variaram muito do que têm apresentado aqui e além. É uma banda que é difícil de se ouvir em festival, com as interrupções inerentes e, neste caso, os festivaleiros estavam um pouco mais interessados em apanhar plástico do chão, mas explicaremos este fenómeno mais à frente.
O Dia 2 do HAVEN começou mais chuvoso e mais frio. A solidariedade dos dinamarqueses havia-nos dado impermeáveis descartáveis na noite antes, e que, ao contrário da nossa vontade, nos vimos obrigados a usar. Havia muito mais gente do que no primeiro dia, pondo ainda mais à prova a capacidade da organização e da resposta dos stands de comida.
Depois de outra actuação de Big Red Machine, que mencionamos de início, deambulámos pelo festival para perceber a vertente da comida, que era uma das primeiras premissas. Além das habituais zonas de alimentação, havia ainda um laboratório de culinária IKEA, onde se podia fazer algumas experiências de comida a vácuo, com comidas para todos os gostos e, impressionantemente, um concurso de culinária, com chefs de vários restaurantes. A bem da verdade, e embora a preços quase proibitivos, tanto a comida como a cerveja eram bastante boas e recomendáveis.
O palco principal foi neste segundo dia inaugurado pela banda dinamarquesa When Saints Go Machine, que parece ser bastante popular. Mais pop electrónico, com efeitos de voz que fazem lembrar o último álbum de Bon Iver, o público rendeu-se à hiperactividade do vocalista durante todo o concerto.
Kwamie Liv, também dinamarquesa, mas com origem zambiana, encheu o recinto do palco secundário. A lembrar M.I.A., a cantora que já colaborou com Angelo Badalamenti, trouxe a sua electrónica e hip-hop e chamou por mais atenção nossa, que ao que parece já é bastante reconhecida na Dinamarca.
A senhora que se seguiu foi o primeiro grande concerto deste dia. Depois de seis anos sem editar álbuns, Leslie Feist volta em dose dupla neste ano, com os Broken Social Scene e com “Pleasure”, o seu álbum a solo. Embora seja quase impossível dissociar Feist dos BSC, a verdade é que Feist é, há muito, um nome sonante na história da música contemporânea. Com uma voz emblemática, e sempre acompanhada pela guitarra, Feist apresentou parte do seu álbum novo, como seria de esperar, sem perder de vista os temas que a catapultaram para a ribalta, como “My Moon, My Man”. Embora mais calma do que em outras épocas, Feist demonstrou, ao longo de uma hora e pouco, que é uma das grandes compositoras das últimas épocas, juntamente com PJ Harvey ou St. Vincent.
E foi debaixo de uma mini-tromba de água que nos preparamos para vermos novamente Bon Iver. Sem S.Carey na bateria – diz-se nos reddits deste mundo que terá ficado nos EUA porque foi/está quase a ser pai pela segunda vez – Justin Vernon apresentou um alinhamento em muito semelhante ao que apresentou no Porto, com a enorme mestria com que sabe interpretar as suas músicas, e a comprovar que é já um ícone da música contemporânea. Há muito a acontecer no universo Bon Iver neste momento, com mensagens crípticas no Instagram, e algumas sugestões de que um novo álbum poderá estar na calha, mas neste concerto nada indicou, nem confirmou esse cenário. Sem Skinny Love, terminou o concerto com Creature Fear, que não foi tão explosiva quanto no Porto, provavelmente pela ausência de Sean Carey na bateria.
Depois de uma outra tromba de água, dos pés encharcados, das mãos geladas da chuva, do Pai Nosso e Avé Maria rezados por termos um impermeável da Tiger Copenhagen enfiado no corpo, The National.
Antes de falarmos do concerto propriamente dito, destacamos a quantidade impressionante de pessoas que estavam para ver The National. À nossa volta. conhecemos um americano que anda a fazer um roadtrip pela Europa, uma canadiana que trabalha na Europa, dois americanos do Virginia, que vieram passar três dias à Europa só para ver os The National, uma americana do Illinois e, vá lá, uma dinamarquesa. E nós, dois portugueses sedentos de National que já os vimos mais de quinze vezes no total. Mais do que a vertente multicultural, é impressionante como os The National continuam a atrair a atenção e a dedicação ao fim de todos estes anos. Talvez seja como é anunciado na música que abriu o concerto “I have only two emotions, careful fear and dead devotion”, mas a verdade é que, se há banda acarinhada pelo público, são os The National.
Sabendo, à partida, que iriam focar no álbum que sairá já no dia 8 de Setembro, os The National equilibraram o alinhamento de forma a que o público não se dispersasse. Depois da inaugural “Don’t Swallow the Cap”, deram-nos “The Day I Die”, música que já vai sendo ensaiada ao vivo há algum tempo (tocaram-na o ano passado no SBSR) e que vai encaixando melhor no concerto. Entre as várias músicas do novo álbum e revisitações ao passado, os The National mostraram o que realmente são, uma impressionante banda ao vivo, muito assente no carisma de Matt Berninger, e no virtuosismo de todos os elementos da banda, com uma força instrumental que surpreende sempre que os vemos. Nestes concertos, Berninger parece estar a querer baixar mais o tom de voz, o que também previne algumas, chamemos-lhe assim, inconsistências na voz.
Quando Justin Vernon está por perto, é quase certo que entrará em palco, desta feita não para a “Slow Show” (que ficou de fora), mas para “Nobody Else Will Be There” e “Guilty Party”. Depois de Vernon, entrou Kate Stables dos This is the Kit para “I’ll Still Destroy You” e Kwamie Liv para “I Need My Girl”. O álbum de 2007, Boxer, foi revisitado com “Apartment Story” e “Fake Empire”, num dia, curiosa e infelizmente, marcado pelas manifestações fascistas nos Estados Unidos (recorde-se que os The National apoiam causas de igualdade social, e que estiveram bastante envolvidos nas campanhas de Obama). Para encore, Aaron Dessner dedica a música “Carin at the Liquor Store” à sua sogra, que faleceu recentemente, num discurso bastante emotivo sobre a sua família dinamarquesa. A senda de colaborações fechou com Ragnar Kjartansson com “De smukke unge mennesker”, num misto de circo, diversão e extroversão extrema a que o islandês já nos habituou.
Entretanto tinha parado de chover, no céu havia uma autêntica chuva de estrelas, e os The National terminaram com a Mr. November e a Terrible Love, num concerto quase perfeito – as novas músicas parecem estar perfeitamente trabalhadas para apresentação ao vivo – e de preparação para o concerto que darão em Lisboa já em Outubro.
O rescaldo deste primeiro HAVEN KBH não podia ser mais positivo. Um recinto grande, talvez merecedor de uma disposição mais favorável e agradável, excelentes pessoas e óptimo ambiente marcado por um cartaz sabiamente selecionado. É um festival que ficará para os próximos anos, e que iremos acompanhar sempre que nos for possível.
Particularidades dos festivais no norte da Europa e dicas para quem queira ir numa próxima edição (já confirmada):
– Grande parte dos trabalhos realizados no festival são feitos por voluntários. Apesar de termos expressado a nossa estupefacção, porque os trabalhos incluem montagem e desmontagem de stands e tendas, vendas, apanha de lixo, etc., é aparentemente algo recorrente e encarado com uma suprema naturalidade, e até orgulho em participar no evento. Neste festival. houve 3000 voluntários que, em troca de dezasseis horas de trabalho (pode ser antes, durante ou depois), recebem o bilhete para o festival. Soubemos que, por exemplo, o Roskilde (o maior festival dinamarquês) tem cerca de trinta mil voluntários todos os anos.
– Apanha de lixo. É mesmo isso, apanha de lixo. Nós fomos reparando que havia muita gente a acumular copos, jarros (a cerveja também é vendida em jarros), e todos os outros resíduos. Chegaram-nos inclusivamente a tirar um jarro, porque a coisa atinge quase a pilhagem. O motivo é porque o depósito pago por cada artigo em plástico é devolvido ao portador, logo, quantos mais copos, mais se recebe. Surpreendentemente, grande maioria dos festivaleiros transforma-se em catador de lixo, e vai alegremente depositá-lo aos stands de recolha, onde um jarro valia 20 DKK (dois euros e setenta), um copo 2 DKK (vinte e sete cêntimos), um copo com beatas valia também não-sabemos-bem-quanto, e vimos pessoas a receber 700 DKK, o que corresponde a 100 €, mais coisa menos coisa. O resultado será, a julgar pela quantidade massiva de recolha, um recinto totalmente limpo e algumas pessoas com o bilhete do festival pago.