O exército de libertação cultural
Acordámos de manhã e eles já cá estavam. Os sinais tinham sido mais do que muitos, mas tudo parecia controlado, até termos acordado de manhã e eles já cá estarem. Chegaram de norte, a meio da noite, e fizeram-se anunciar pelas sirenes de ataque aéreo. Não sabia que tínhamos sirenes de ataque aéreo na nossa cidade até àquela noite. Nunca me tinha imaginado a dar razão aos que fugiram antes de mim. Aos que eu tanto critiquei quando se cruzaram comigo nas escadas do prédio; O vizinho fica? Não entendo a pergunta.
Olhava para a rapariga dos olhos verdes, que já tantas vezes tinha imaginado em posições escandalosas, de corpo suado e em falsos êxtases nos meus braços, e não lhe entendia a pergunta. O vizinho tem a certeza que quer ficar? Insistiu comigo. Não tenho para onde ir; Respondi-lhe com sinceridade. Ela, de mala na mão, e com um pequeno saco de plástico carregado de maçãs amarelas, continuava incrédula com a minha resposta; O vizinho é que sabe. Já no fundo do corredor, decidi arriscar uma última frase; Gosto muito de si, vizinha.
Sempre achei que em dúvida, devemos sempre encarar a última vez que vemos alguém exactamente como isso, a última vez que vemos alguém. E se pode ser a última vez, então a última frase ganha um significado especial. Voltei a entrar em casa, e sentado na poltrona em frente à televisão, desligada pelo corte de energia, imaginei-a. De forma diferente. Imaginei-a a seguir em direcção à estação de autocarros, a colocar-se em posição na multidão que aguardava saída da cidade, para qualquer destino que não aquele. Imaginei-lhe a distribuição de maçãs pelas pessoas que a rodeavam. Imaginei a cor a preencher o enquadramento da cena. Imaginei os mastigares sorridentes. Imaginei-a satisfeita. Senti-me feliz com esse gesto imaginado, afinal aquelas maçãs eram da macieira do nosso prédio, sumarentas, gratuitas, mereciam ser benessiantes para qualquer tipo de espera, mas sobretudo aquela.
Sem nenhum controlo sobre a minha imaginação, não me consegui juntar a ela naquela viagem solitária a caminho da Europa. Eu não era europeu, como ela, dessa maneira de quem foge à primeira guerra que lhe aparece à frente. Eu era de ficar. Na guerra ou na paz, aquela era a minha casa, e para onde ir se era ali a minha casa? Talvez eles não fossem tão maus como pareciam. Talvez a sua propaganda fosse verdadeira. Talvez a minha cidade estivesse mesmo destinada a ser outra coisa, a libertar-se mesmo daqueles que nos queriam longe da nossa verdadeira cultura.
Eu era culto, sempre o tinha sido, e se ficasse, não teria dificuldade em entender a nova realidade cultural. Até poderia ser a oportunidade profissional que há tanto tempo esperava. A falta de trabalho dos últimos tempos tinha-me deixado cada vez mais ressarcido de raiva. Era uma raiva minha velha conhecida, a tal que justifica os nossos próprios erros com a desatenção de estranhos poderosos que nem sequer conhecemos. Talvez estes fossem mais fáceis de conhecer, de convencer!
Nesta altura, e praticamente às escuras, ouvi o maior estrondo que já tinha ouvido. O chão estremeceu, a poltrona levantou-se, e a minha imaginação centrou-se na multidão em movimento com que a minha vizinha dos olhos verdes se fazia em fuga dali para fora. Espero que consiga; Foi o meu último pensamento enquanto o prédio desabava comigo lá dentro. Por fim, tinha sido libertado.