Preciso d’um herói
“Homens a sério isso todas nós sabemos
Claudisabel – Preciso d’um herói
Cada vez há menos, cada vez há menos
Mas homens tolos, mentirosos e banais
Cada vez há mais, cada vez há mais”
Tive dúvidas sobre qual a melhor citação a usar para exprimir o que sinto. A alternativa era uma frase de Winston Churchill. Devo confessar que optei, por comodidade, por aquela que sabia de cor. Mas não estou aqui para me gabar.
Nestes dias angustiantes em que vivemos uma guerra na Europa, com assustadora probabilidade de tornar-se mundial, são as imagens dos heróis e heroínas que, de alguma forma, nos serenam a alma e nos fazem voltar a acreditar na humanidade.
Olho sempre para estes exemplos com admiração e inveja pois, como diria aquele rapaz do skate, a coragem é uma cena que não me assiste. É por isso que eu tanto valorizo Volodymyr Zelensky: o comediante que se tornou John McClane de um dia para o outro.
Ortega y Gasset, filósofo espanhol (sei que pelo nome parecem dois, mas é só um), disse certo dia que “um homem é um homem e a sua circunstância” (devia ter dito “uma pessoa”, já sabemos, têm razão — e se calhar a Claudisabel também). Mas este que vos escreve em nenhuma circunstância conseguiria ter os tomates que o jovem presidente ucraniano tem demonstrado (metaforicamente e ainda bem, nada contra quem preferisse o contrário).
Eu seria o primeiro a dizer aos americanos: “Munições? Eh pá, ok, então e uma boleiazinha, não se arranja?”. Ou feito como aquele senhor entrevistado pela TVI durante um incêndio: “sim, a guerra ‘tá a cinco metros de minha casa mas vou sair, vou abandonar, tenho uma consulta agora às cinco horas… não posso estar aqui 😉 … “
(Por falar em John McClane, não sou nenhum especialista em estratégia militar, lamento informá-los, mas tenho a minha quota de filmes de ação dos anos 80. Não sei se alguém reparou mas parece que há um tubo de gás que liga a Rússia à Alemanha. Lembram-se do final de “Assalto ao Aeroporto”? Duas dicas: isqueiro e Yippee-ki-yay motherfucker.)
Zelensky tem sido uma surpresa para todo o mundo; personifica a resistência perante um opressor gigante, sádico e maníaco, que detém uma capacidade bélica quase invencível. E por isso jamais será esquecido.
(Calma, não quero que me acusem de romantizar a guerra — está uma ideia parva para sair já a seguir, que é o que o mundo espera de mim, bem o sei).
Apesar da abnegação do povo ucraniano, as tropas russas têm vindo a ganhar terreno e a hipótese do país ceder à invasão russa é cada vez maior.
Mas já diz o povo que enquanto há vida há esperança e a minha reside no mundo globalizado. Aquele que Putin quer combater: o mundo da internet, de uma cultura mundial, das redes sociais; a “aldeia global” que faz com que um jovem russo veja exatamente as mesmas séries no Netflix, os mesmos vídeos de gatinhos no Facebook ou as mesmas danças no TikTok que alguém da sua idade na América do Sul ou na Austrália. A minha confiança está na chamada “Geração Z”, os nativos digitais, os “zapeadores” com as suas multiplataformas onde têm tudo a todo o tempo, enfermos de uma ansiedade constante por entretenimento.
E esta minha esperança tem menos que ver com a capacidade desta geração de falar línguas ou de dominar a tecnologia do que tem com a sua incapacidade de desconectar ou a sua tão característica falta de atenção.
Analisemos a hipótese.
Fiz as contas por alto e vou usar a estatística como melhor me convier no propósito de justificar a minha tese, é assim que trabalham os grandes economistas.
A Rússia tem uma população de 146 milhões de pessoas contra 42 milhões da Ucrânia (antes da Guerra). A percentagem da população russa entre os 15 e os 29 anos ronda os 16% (dados da Wikipedia). O exército de Putin estará certamente repleto destes jovens, para ali atirados como carne para canhão — pelas imagens que nos chegam dos soldados capturados pelo exército ucraniano, parecem ter sido os mais novos a constituir a primeira linha do ataque.
Acredito que são estes jovens que podem permitir a vitória do país invadido, porquanto estimo que o exército russo, por maioria de razão, tenha mais membros da geração Z do que o ucraniano.
Imagino esta malta, que em termos de trincheiras só conhece as do Twitter, eventualmente experiente em combates mas no Fortnite, visualizo-a aos saltos de canguru como faz no videojogo enquanto tenta alvejar o inimigo com uma arma automática numa mão e um smartphone na outra. Faço ideia de como estará a moral destas tropas, as suas carinhas de enojados a olhar para a ração de combate e a pensar como raio vão fotografar aquela langonha para o Instagram, ao mesmo tempo que utilizam expressões aprendidas nas séries de teenagers americanos, tais como “ew…“, “oh my god” ou ainda “wtf“.
Quase consigo imaginar os diálogos entre os jovens soldados russos super aborrecidos:
— Bro, esta cena da guerra é bué tipo last century, ou dois séculos atrás ou lá o que foi…
— Puto, ‘tás a brincar? Isto é, tipo, a cena mais cringe de sempre!
— Yah! O Putin é alto boomer, mano. Nos dois sentidos, eh, eh.
— LOL.
— E é totalmente evil para o meio ambiente, isto.
— Podes crer, bro. E já agora, a partir de hoje trata-me por Loretta.
— Na boa, flawless.
(Peço desde já desculpa aos jovens por tentar simular uma conversa nos seus termos. No meu tempo, quando alguém com a minha idade de agora o tentava fazer, usávamos outra palavra, não era “cringe”, deixa ver se me recordo, ah!, já sei, “vergonha”).
E isto para não falar de como poderão facilmente denunciar a sua posição no terreno através de tentativas de engate no tinder ou até oferecer a própria arma ao inimigo, à troca de wi-fi.
Podem chamar-me Velho do Restelo à vontade, no entanto, como tentei explicar, a minha esperança jaz na juventude. E na sua incapacidade para uma guerra.
Enquanto escrevo esta parvoíce, a televisão mostra-me um velho de uma cidade da zona oriental da Ucrânia, vestido de um desânimo sujo e despenteado, que exclama: “sou um adulto mas só me apetece chorar”. Uma súbita projeção no ecrã de uma voz vinda do fundo do meu cérebro.
Acto contínuo quero apagar tudo o que escrevi, deixar-me de piadas, deixar-me de textos, deixar-me de ilusões.
Engulo em seco e volto aos heróis, preciso deles mais do que nunca: o campeão de boxe que agora é Presidente da Câmara de Kiev; o estoicismo de Zelensky quando lhe perguntam que esperança tem nas negociações de paz; os pais que levam os filhos à fronteira e regressam para combater; as mulheres com crianças que partem em direção ao desconhecido ou as que decidem ficar; todos os que acolhem em vários países, todos os que se voluntariam para ajudar; os que regressam à Ucrânia para combater; os protestantes russos, a sobrevivente de Leningrado, 78 anos de idade, presa por se manifestar contra a Guerra em S. Petersburgo; o florista da Praça de Independência, no centro de Kiev, que não fechou a banca; a idosa que ofereceu sementes de girassol aos soldados russos: “Que as ponham nos bolsos — para que nasçam flores dos seus cadáveres onde forem sepultados”.
A memória traz-me a Cantiga do Fogo e da Guerra de José Mário Branco, poema de Sérgio Godinho:
“Há um fogo enorme no jardim da guerra”.
E eu não tenho mais palavras.
P.S.: Todos podemos ser heróis se pudermos e quisermos ajudar. Veja aqui como fazê-lo.
Slava Ukraini!