Estamos aqui para sermos o melhor de nós para quem nos olha
A guerra tem um cheiro que nenhuma outra coisa tem. Tem uma voz diferente de todas as outras que já ouvi. Ali, naquelas árvores bonitas que os meus olhos param para contemplar, caem bombas. Morrem pessoas, acabam vidas, projectos e sonhos. Acordámos a saber que as bombas tinham caído bem perto de nós e hoje ouvíamos as sirenes como se fosse na porta ao lado.
Cheira a guerra desde esta colina onde estou até ao outro lado do mundo. Por aqui não se dorme, o meu corpo fala uma nova língua, não desliga, não se sente cansado e carrega ao peito a pressão de uma mão inteira que me quer esmagar contra a parede. Dei por mim a perguntar a uns tantos deuses o que quer a vida dizer-nos com tudo isto, e que tenho eu a aprender aqui? A noite passada, ao tentar fechar os olhos senti um medo inédito. É um medo que começa no corpo físico e segue para a alma. Não são feridas de infância, inseguranças da adolescência, más decisões do mundo adulto. É um medo que sabe a metal na boca e te faz ficar imóvel, como se congelado, como se com o menor movimento o mundo eclodisse. Questionei-me sobre o meu lugar no mundo. Sobre o de todos nós. As calças do meu pijama continuavam molhadas das lágrimas de alguém que chorou no meu colo, de alguém que não queria morrer e, hoje, o meu ombro limpou as lágrimas da Herble, de 80 anos, que depois de atravessar a Ucrânia numa cadeira de rodas, me perguntava se o condutor que a ia levar até ao centro da Polónia não lhe ia fazer mal. Quando acalmou abraçou-me e disse-me muitas coisas em russo ao ouvido. Umas nunca saberei o que são, mas as outras, entre as traduções que a Zoriana conseguia, ficaram aqui, em mim.
Ao terminar o dia, a Olysseia (que afinal se chama Olesya) não escondia o cansaço, a desmotivação. Num discurso inteligente e articulado, hoje os olhos brilhavam pouco e ela pedia para o mundo não esquecer os ucranianos, a bonita história da Ucrânia e a necessidade de nos mexermos uns pelos outros. Do mais subtil gesto, ao maior acto de amor ao próximo. De empatia.
Depois do banho, a água que me cura e me faz ganhar toda a energia do mundo, vejo esta mensagem (traduzida) “Querida Filipa, obrigada pela tua ajuda. Tocaste o meu coração hoje e vou lembrar para sempre que há bondade. Tocaste o meu coração, como se um raio de sol abrisse um céu de nuvens carregadas. (…) ainda estou impressionada com a sinceridade como ajudámos aquela avozinha. Ganhei força para acreditar mais e continuar a lutar.”
E foi assim que encontrei resposta para a minha pergunta. Os voluntários — e todos aqueles que se movem pelos outros — são raios de luz num dia de chuva. São a esperança de um dia melhor, de que na próxima página a história pode ser melhor. De que há gente que faz, se multiplica e se esforça por aquilo que acredita ser o certo mas, principalmente, pelo outro. Se tinhamos dúvidas do que devemos ser na vida, que com isto deixemos de as ter. Estamos aqui para sermos o melhor de nós para quem nos olha. A começar em casa, pelos nossos, até ao mais longínquo ser.
Este é o poder do amor. Ele sempre curará um coração doente. E, seja qual for a guerra, ele sempre vencerá.
Crónica de Filipa Do Canto Araújo.
A Filipa é professora universitária, escreve para o farblog e é voluntária numa das fronteiras com a Ucrânia.