A força e a fraqueza em a “Insustentável Leveza do Ser”, de Milan Kundera
Quando, em 1968, Alexander Dubček alcançou a liderança do Partido Comunista da, então, Checoslováquia — hoje dividida entre os estados da República Checa e Eslováquia — iniciou um período histórico de maior liberdade e abertura no partido e, subsequentemente, no país, que ainda se encontrava sob o jugo da então URSS. A mesma população que, inicialmente, mostrou simpatia pela via socialista finda a segunda guerra mundial — nas eleições de 1946 cedeu 40% dos votos ao partido Comunista — começava a exigir uma maior abertura e uma via socialista mais humanizada, apoiada pelos intelectuais do país. Apenas para contextualizar, o Partido Comunista alcançou o poder na Checoslováquia, em 1948, via golpe de estado, mas já tinha uma larga base popular de apoiantes.
Alexander Dubček, não obstante, foi o grande rosto dessa percepção socialista mais humana e foi, então, lançado em Abril de 1968 o “Programa de Acção”, caracterizado por uma maior liberalização política e liberdade de pensamento. O programa previa o fim da censura, a abertura parlamentar, a autonomia sindical, a liberdade religiosa, científica e artística, o direito à greve e a igualdade entre checos e eslovacos. Toda esta abertura, no entanto, que se denominou a “Primavera de Praga”, culminaria com a invasão em força do exército soviético, em Agosto desse mesmo ano, sob o pretexto do país estar a resvalar para o capitalismo. O termo “sovet”, em russo, significa conselho (assim mesmo, com “s”), e o termo passou a designar a “União da República Socialista Soviética” (URSS), que se extinguiu em 1991. Por isso mesmo, aplicar o mesmo termo para o contexto actual da Rússia não é correcto, nem a nível histórico como jornalístico.
“Quanto mais pesado for o fardo, mais próxima da terra se encontra a nossa vida e mais real e verdadeira é. Em contrapartida, a ausência total de fardo faz com que o ser humano se torne mais leve do que o ar, fá-lo voar, afastar-se da terra, do ser terrestre, torna-o semi-real e os seus movimentos tão livres quanto insignificantes. Que escolher, então? O peso ou a leveza?”
“A Insustentável Leveza do Ser”, de Milan Kundera
O livro “A Insustentável Leveza do Ser”, de Milan Kundera, lançado em 1985, centra-se, precisamente, na invasão russa da Checoslováquia. O autor, que nasceu em 1929, em Brno, actual Republica Checa, teve a sua própria participação na “Primavera de Praga”, assim como outros artistas. A verdade, é que os anos 60 foram de grande efervescência cultural, artística e intelectual na Checoslováquia, daí o desejo da “Primavera de Praga” e existir a vontade de uma mudança mais pungente do paradigma político — existia uma pressão popular para isso acontecer. O congresso dos escritores Checoslovacos foi disso um exemplo. Valeu a Kundera, então professor de literatura da Escola de Cinema de Praga, um processo disciplinar devido ao seu discurso. O escritor já tinha sido expulso do Partido Comunista uma primeira vez, em 1949, e, no pós invasão russa, Kundera acabou por perder o seu lugar como professor na escola de cinema, viu os seus livros interditos e banidos das bibliotecas nacionais e ficou impedido de sair do país, até 1975, quando rumou a França para leccionar na Universidade de Rennes.
Embora a crítica ao totalitarismo comunista seja uma constante nos seus livros, Kundera não é só política, muito longe disso. É psicologia e filosofia no seu estado puro e, “A Insustentável Leveza do Ser”, não é excepção. A característica que, talvez, o leitor ache mais peculiar na sua escrita, é o facto do autor se permitir sair da linha da narrativa e escrever notas, apartes, sobre conceitos que são importantes para o livro e suas personagens. Chega a explicar, por exemplo, como as personagens lhe surgiram. Essas opções só reforçam o carácter psicológico e filosófico do que escreve.
“Se a Revolução Francesa se repetisse eternamente, a historiografia francesa orgulhar-se-ia com certeza menos do seu Robespierre. Mas, como se refere a algo que nunca mais voltará, esses anos sangrentos reduzem-se hoje apenas a palavras, teorias, discussões, mais leves do que penas, algo que já não aterroriza ninguém.”
“A Insustentável Leveza do Ser”, de Milan Kundera
Dividido em sete partes, uma marca visível em toda a obra de Kundera, a grande base deste livro é a teoria do eterno retorno, teoria desenvolvida por esse grande louco que dá pelo nome de Nietzsche. Mas o que é o eterno retorno? É, justamente, com essa explicação que o livro começa. Nietzsche acreditava que o tempo e o espaço eram independentes entre si. Então, como para a linha do tempo não era conhecido um limite, ao contrário do espaço e de todos os elementos que nele habitam, tudo o que vivemos teria de se repetir ad eternum. Mas Kundera perspectiva o eterno retorno pela sua negação e inexistência, ou seja, se, afinal, a vida não se repete, então, tudo o que vivemos assume uma leveza igual à leveza de uma pena, mesmo os episódios mais pesados da vida. O contrário se dá com o que se repete, que chega a assumir um fardo insustentável. Mas a grande questão é: poderá, esse fardo, conseguir encontrar um lado mais leve? E serão, as coisas, assim tão fáceis de definir e catalogar? Ou seja, consegue um lado mais fraco transportar-se para um lado com mais força, e um lado com mais força desejar um estado mais fraco? A posição de leveza e força da vida poderá ambicionar algo mais pesado e fraco? Isto porque, algo mais pesado e fraco poderá conter um outro tipo de peso que, no fundo, pode conter o significado mais expressivo das nossas vidas?
Em primeiro lugar, o autor chega a dar o exemplo da revolução francesa, por exemplo: “Se a Revolução Francesa se repetisse eternamente, a historiografia francesa orgulhar-se-ia com certeza menos do seu Robespierre. Mas, como se refere a algo que nunca mais voltará, esses anos sangrentos reduzem-se hoje apenas a palavras, teorias, discussões, mais leves do que penas, algo que já não aterroriza ninguém. Há uma enorme diferença entre um Robespierre que apareceu uma única vez na história e um Robespierre que eternamente voltasse para cortar a cabeça aos franceses. Digamos, portanto, que a ideia do eterno retorno designa uma perspectiva em que as coisas não nos aparecem como é costume, porque nos aparecem sem a circunstância atenuante da sua fugacidade. Essa circunstância atenuante impede-nos, com efeito, de pronunciar um veredicto. Poderá condenar-se o que é efémero? As nuvens alaranjadas do poente iluminam tudo com o encanto da nostalgia; mesmo a guilhotina.”.
Mas, depois, acrescenta: “Se o eterno retorno é o fardo mais pesado, então, sobre tal pano de fundo, as nossas vidas podem recortar-se em toda a sua esplêndida leveza. Mas, na verdade, será o peso atroz e a leveza bela? O fardo mais pesado esmaga-nos, verga-nos, comprime-nos contra o solo. Mas, na poesia amorosa de todos os séculos, a mulher sempre desejou receber o fardo do corpo masculino. Portanto, o fardo mais pesado é também, ao mesmo tempo, a imagem do momento mais intenso de realização de uma vida. Quanto mais pesado for o fardo, mais próxima da terra se encontra a nossa vida e mais real e verdadeira é. Em contrapartida, a ausência total de fardo faz com que o ser humano se torne mais leve do que o ar, fá-lo voar, afastar-se da terra, do ser terrestre, torna-o semi-real e os seus movimentos tão livres quanto insignificantes. Que escolher, então? O peso ou a leveza?”.
Todas estas questões são expressas na interligação destas dicotomias, peso/leveza e força/fraqueza. Estas dicotomias são encarnadas pelo casal Tomás e Teresa. Tomás é o que tem uma posição mais forte (força), no plano da vida. Tem uma boa posição social porque é médico. Além disso vive livre, despreocupado, com relacionamentos amorosos casuais e descomprometidos, principalmente com Sabina — outra personagem importante, uma artista, que pode ser interpretada como a versão feminina de Tomás. Essa posição de força e independência sobre o que faz permite-lhe viver o lado leve da vida, sentir a sua leveza. A força surge, assim, associada à leveza.
Teresa, por sua vez, é o seu contrário. A sua posição perante a vida é a de fraqueza porque não tem poder de escolha. Como consequência, tem de encarar a imundice humana do bar onde trabalha. A mãe dá-lhe uma visão suja e imunda do seu corpo. A sua própria fraqueza permite-lhe antever, portanto, o lado pesado da vida. A fraqueza surge, assim, associada ao peso. Quando se conhecem e, posteriormente, se dá invasão russa, Teresa começa a descobrir uma maior força dentro de si e descobre, por uma vez, o que pode ser o lado leve da vida. É o peso a transformar-se em força. Já Tomás vê a sua posição social e estilo de vida a deteriorarem-se, vê-se numa posição mais fraca. Além disso, Teresa puxa-o à sua condição e prende-o. Começa a sentir, por sua vez, o lado mais pesado da vida. Mas, quando a sua companheira constata que Tomás poderia tomar uma decisão que seria mais proveitosa para ele e não o fez por sua causa, pergunta-lhe se não se sente arrependido. Tomás responde que não. Ou seja, está preso a ela não por obrigação, fatalidade ou porque tem de ser.
Está preso a ela porque foi a sua escolha deliberada. Ele troca a leveza pelo peso por escolha. Volta-se a relembrar: “…o fardo mais pesado é também, ao mesmo tempo, a imagem do momento mais intenso de realização de uma vida. Quanto mais pesado for o fardo, mais próxima da terra se encontra a nossa vida e mais real e verdadeira é. Em contrapartida, a ausência total de fardo faz com que o ser humano se torne mais leve do que o ar, fá-lo voar, afastar-se da terra, do ser terrestre, torna-o semi-real e os seus movimentos tão livres quanto insignificantes. Que escolher, então? O peso ou a leveza?”.
Isto leva-nos ao conceito de amor-fati, que acaba por ser uma resposta à prisão e ao determinismo do eterno-retorno. O amor-fati não é mais do que a nossa coragem de seguir os nossos verdadeiros amores, mesmo que isso nos coloque na posição mais fraca da vida. Aceitar as consequências de seguirmos os nossos próprios passos. Uma vida leve e forte faria sentido sem o peso e a fraqueza que o amor tem? Eis a questão do livro.
Claro que aqui, há que se deixar um alerta. O peso do amor nada tem a ver com um peso pejorativo que, sim, deve ser evitado. Aborda-se, somente, a velha questão: quando se ama alguém, de alguma forma estamos ligados a essa pessoa, há um comprometimento, pelo menos, que nos leva a excluir outras hipóteses. Se essas hipóteses que excluímos seriam boas ou más, melhores ou piores, não sabemos porque não as vivemos tempo o suficiente — seguimos outras vias. Isto é transponível para as escolhas que fazemos nas nossas vidas. Lá está, o eterno retorno não existe e não temos termo de comparação. Se nos vemos com menos hipóteses, poderemos considerar que estamos numa posição de maior fragilidade, mas a centelha de um amor sem mentiras — a acreditar nele — poderia ser, pelo menos, a centelha que, numa posição de fraqueza em que vemos hipóteses restringidas, nos faz viver, pelo menos, o carpe diem, o momento, as horas do dia — tal como uma leve dança que nos transporta e cuja alegria ganha uma força imensurável em nós — é uma suposta fraqueza a transformar-se em verdadeira força. Imaginemos, por exemplo, o homem de negócios que troca a sua profissão que lhe dá mais status, por um sonho que sempre quis concretizar e, realmente, o faz feliz.
Se um beijo amoroso for dado num verdadeiro campo de batalha, é certo que as armas poderão provocar mais medo porque têm mais força, mas as batalhas passam. É certo que virão outras, mas isso só acontece porque nos esquecemos do peso que as anteriores tiveram. No fundo, na guerra procuramos satisfações e compensações erróneas que nada têm a ver com a luta em si e, por isso, passam a ser tão leves como uma pena na trajectória do tempo. A recordação desse beijo amoroso fica sempre, e é a esse beijo frágil a que queremos voltar, porque é ele, por mais breve que seja, que transforma a nossa fraqueza em verdadeira força. Essa é a mais rebelde das atitudes porque o beijo sincero não discrimina quem une, é involuntário, enquanto a guerra discrimina quem se separa.