“You Cannot Kill David Arquette” ou “dropkicks” nos traumas
Este artigo pode conter spoilers.
O ano era 2000. The Rock, “Stone Cold” Steve Austin e Triple H esgotavam arenas e quebravam recordes de audiência na World Wrestling Federation (WWF), hoje WWE. A companhia concorrente, World Championship Wrestling (WCW), tinha enfraquecido. As suas estrelas transmedia, “Hollywood” Hulk Hogan, Goldberg e Sting, foram ofuscadas. Acabaria por falir, sendo comprada pela WWF em 2001. No ano 2000, a WCW teve entre os seus campeões mundiais de pesos pesados Ric Flair, já nos seus 51 anos, Vince Russo, um não-wrestler que trabalhava como diretor criativo na companhia, e, numa tentativa desesperada de publicidade, David Arquette.
O ator de “Scream” teve um percurso profissional semelhante ao da companhia norte-americana. Depois de algumas interpretações promissoras (recomendo “Johns” de Scott Silver, argumentista de “Joker”) e o sucesso de bilheteira do supramencionado filme de Wes Craven, foi convidado para figurar na capa da lendária Vanity Fair de abril de 1996. Nela constavam, entre outros, Leonardo DiCaprio, Matthew McConaughey, Will Smith, Benicio del Toro e, sim, David Arquette.
Qual a diferença entre estes nomes e o do malfadado ator-tornado-wrestler? É que, ao contrário de algumas das mais populares e premiadas estrelas de Hollywood, “You Cannot Kill David Arquette”! Este documentário de David Darg e Price James, que estreou em 2020, abre com um protagonista longe do apogeu de 96: com excesso de peso, alcoólico, irresponsável, depressivo e a viver numa mansão milionária. Sim, as semelhanças a “Bojack Horseman” são mais que evidentes. Contudo, a principal diferença entre Arquette e o cavalo mais humano de “Hollywoob”, é a presença constante e positiva da sua mulher (co-produtora do filme), filhos e amigos. Contrastando, a sua carreira cinematográfica esmoreceu para um flutuar entre flops de bilheteira, até ser hora de gravar uma nova, e inevitável, sequela de “Scream”. Arquette é fã de wrestling desde criança. É com tristeza que admite ver o período em que foi Campeão Mundial na WCW como o início do seu declínio profissional.
O wrestling é estigmatizado como o “primo esquisito” do teatro, luta-livre e cinema, sendo crossovers recebidos com desconfiança e, muitas vezes, hostilidade em Hollywood. Por outro lado, a inaptidão de Arquette para lutar, combinada com a conquista do título mais importante da segunda maior companhia do mundo, leva-o a ser odiado e ostracizado durante décadas pelos fãs do desporto-arte. O crítico Peter Bradshaw questionou no The Guardian: “Pode este filme ser lido como uma sátira a toda a palermice do showbusiness?” Sim: seguindo a jornada de redenção de David, que luta para conquistar a aprovação dos fãs de wrestling e, consequentemente, respeito próprio.
A forma mais mediatizada de wrestling profissional tem as suas origens nas feiras itinerantes do século XX, com as suas raízes a estenderem-se muito para além disso. 4000 anos antes de David Arquette vencer o título da WCW, no Antigo Egipto, já se faziam registos visuais de combates de wrestling. O filósofo grego, Platão, praticava a modalidade na sua juventude, existindo registos de ter competido nos Jogos Ístmicos. Desde então sofreu várias mutações para corresponder aos avanços genéticos, científicos, económicos, desportivos, artísticos, tecnológicos, técnicos, éticos e sociais que a profissão de atleta e ator possam ter desenvolvido ao longo dos anos. Atualmente, o desporto-arte encontra-se numa fase de interesse renovado: uma nova companhia, All Elite Wrestling (AEW), representada por vários wrestlers neste documentário, tem rivalizado com a WWE nas audiências e sido alvo de artigos de calibre, vincando a qualidade do seu produto. Mas, qualquer pessoa familiarizada com o conceito, não pode negar a primordialidade inerente à glorificação de homens e mulheres, em trajes diminutos, cuja função é entreter uma multidão com desafios físicos encenados. No entanto, como fica abundantemente explícito neste documentário, não há nada de encenado no sacrifício físico, esforço psicológico e traumas muito reais que são exorcizados no ringue.
A ética de David na sua empreitada platónica é motivacional. O ator norte-americano deixa de fumar e beber álcool, treina diariamente e aprende a modalidade com luchadores. Numa das cenas mais bizarras do filme, Arquette atira-se do topo de um escadote para cima de outros wrestlers, à frente de um semáforo vermelho. Os condutores de Tijuana apitam, em aprovação, e dão-lhe dinheiro pelos seus esforços. Com o regresso aos E.U.A., o sucesso na cena de wrestling independente e convites de imprensa disparam. No livro IV da República, Platão escreve que a “(…) justiça é obtida quando alguém cumpre as suas obrigações morais e políticas para com a sua sociedade.”
Há um despojo catártico muito humano no meio de todas as hurricanranas, comportamentos impulsivos e pioneses cravados na carne. Por mais que trema na batalha com a ansiedade, há um sistema-de-suporte-humano forte à volta de Arquette, que o impede de chegar a trevas mais profundas: muito embora não acreditem ou percebam o fascínio pelo desporto-arte. O momento em que a sua mulher o acompanha até ao ringue tem tanto de pungente como de cómico. “Para ser honesto, estou só farto de ser uma piada (…)”, admite o ator, vestindo um roupão brilhante, em cima de um cavalo, no topo de uma colina, ao pôr-do-sol, enquanto fuma um iQos e o plano sobe para nos permitir admirar o horizonte… Este tipo de desabafos são sempre questionáveis: mas quando o vemos a ser socorrido no hospital pelo esfaqueamento que sofreu no ringue, tendo insistido em acabar o combate, é difícil não acreditar na força de vontade do protagonista.
Os realizadores têm o claro objetivo de colocar Arquette no papel de underdog. Ele falha, ele luta, ele consegue. Ele falha, ele luta, ele consegue. Mesmo os que não entendem a sua determinação, reconhecem o valor da sua jornada. O mesmo acontece a quem vê este documentário: pode não gostar/perceber David Arquette ou wrestling, mas tem aqui ambos os assuntos expostos na sua forma mais íntima e intimista. E ainda que o documentário termine numa nota vitoriosa, basta uma visita ao IMDB para perceber que, pelo menos em termos profissionais, isso não aconteceu. Ele falha, ele luta, ele falha outra vez. E talvez, ao perder, ganhe. Se é uma ego-trip? Sim… Masculinidade tóxica? No seu apogeu. Está disponível na Filmin e merece ser visto.