A Lida dos Campeões
“Nunca conheci quem tivesse levado porrada.
Fernando Pessoa – Poema em Linha Recta
Todos os meus conhecidos têm sido campeões em tudo.”
Há um tipo de pessoas que sempre me provocou especial urticária: os campeões. Aqueles para quem tudo o que fazem, veem, dizem ou ouvem falar é, tem de ser, não há outra hipótese, “o melhor!”.
Um amigo que podemos integrar nessa categoria convidou-me, faz hoje oito dias, para almoçar no restaurante “com maior rotação do distrito de Leiria”.
Reparem, não é o melhor. Ou o que tem a cabidela mais saborosa, o leitão mais estaladiço, a carta de vinhos mais diversificada, ou mesmo a mais bela vista para o mar, serra ou castelo — é o que apresenta a “maior rotação”. Porventura utilizou esta expressão por esgotamento de todas as anteriores, que terá usado para indicar outros melhores restaurantes onde tínhamos absolutamente de ir. O campeão não gosta de ser confrontado com incongruências e é por isso que tem uma vasta coleção de “melhores”. Se, por alguma eventualidade do destino, a coisa corre mal, algo muito raro de acontecer na sua vida, transforma-se o acontecimento no pior. Os campeões não convivem com meios termos, e isso talvez seja o melhor que fazem.
Outra nota digna de registo é a sua absoluta certeza geográfica. Das duas uma: estamos perante um conhecedor profundo de toda e qualquer casa de pasto entre Castanheira de Pera e Peniche, o que o torna a única pessoa na posse da totalidade dos dados quantitativos e qualitativos para poder deliberar de forma inequívoca qual é o melhor de todos ou, neste caso, o que apresenta “maior rotação” (nem vou sequer discutir o que poderá estar incluído nesta classificação); ou, segunda hipótese, trata-se de um mero e convicto bazófias. E aqui, há que o admitir, estará certamente no topoda lista.
Ao convite descrito acima, e porque não mostrei especial recetividade à qualidade evidenciada, o meu vencedor amigo acrescentou: “e também é o que tem as melhores empregadas!”.
O rapaz não o disse por machismo, acreditem, nem tão pouco para me convencer. Fê-lo porque um campeão entusiasma-se com facilidade: a ânsia de destacar a sua sugestão transformou um normalíssimo (vim a sabê-lo depois) estabelecimento comercial onde se servem refeições no apogeu da “rotação” e da excelência no que diz respeito ao nobre ofício de servir às mesas.
Sinto alguma inveja deste meu amigo, confesso, no sentido em que há um lado em mim que gostaria de acreditar que tudo o que faço, vejo, compro, consumo, etc., é o melhor, top ou brutal. Nem que fosse o melhor que consigo. Mas nem isso, apenas estou ao nível de Champions League na insegurança. Sou protagonista de grandiosas insónias, posso gabar-me apenas das mais formidáveis ansiedades. Em tudo o resto luto pela manutenção, para continuar na pouco imaginativa analogia futebolística.
Mas o que me diverte mais, no meio de tudo isto, é quando os campeões, habituadíssimos a que tudo na sua vida seja o absoluto pináculo da categoria em que se insere, se vangloriam das coisas menos óbvias. Quando a água da torneira da zona em que residem é “a melhor do país”, quando a sua aldeia tem “a igreja mais antiga da zona centro-oeste de valetas de cima” (por norma, se o campeão vive nalguma aldeia cuja toponímia a divide por diferenças de altitude, nunca é na “de baixo”). Ou ainda, num exemplo de infelicidade, quando raspam com os joelhos no asfalto após uma queda de motorizada, esta ocorreu no preciso local onde o alcatrão era “daquele novo, de última geração”, que não deve ser confundido com aquele pavimento manhoso das ruas da minha terra. Óbvio que, quando o campeão vive um infortúnio destes, males maiores foram evitados pela sua perícia na condução do ciclomotor, ou mesmo pela forma como os próprios joelhos foram colocados ao dispor da gravilha.
Certa vez, um dos campeões que conheço disse-me que estava “tranquilíssimo” quanto a um processo judicial em que estava envolvido. Até porque o seu advogado era, e cito, “um dos principais acionistas de um dos maiores bancos do Algarve”.
A era das redes sociais exponenciou este fenómeno ou, pelo menos, tornou-o mais visível. Um campeão tem no Instagram um palco propício à demonstração de uma vida ganhadora — embora um restaurante com a “maior rotação” não seja fácil de expressar em imagens, mas isso é um problema que não é meu. Se já antes da idade do digital era difícil um campeão aceitar um argumento contrário, agora muito menos. Até porque ainda não foi inventado um “botão de like” que consiga demonstrar o sentimento “não concordo com o que estás a dizer, embora entenda a tua opinião, e gostava de debater contigo as minhas ideias num ambiente calmo e propício à salutar discussão de pontos de vista”.
Mas a arte da extrema apreciação de feitos próprios é decerto tão antiga quanto a própria humanidade. É fácil imaginar os primeiros humanos a armarem-se ao pingarelho: “oiçam, acreditem em mim, o Vale do Lapedo tem os melhores sapiens que uma neandertal já alguma vez viu”.
Por exemplo, nós, portugueses, resiliente povo de um país pequeno, temos uma tendência natural para vangloriar os nossos feitos. O humor típico português versa, muitas vezes, sobre o “underdog”, o vencedor inesperado que, embora possa ter menos escolaridade, menos dinheiro, etc, dá sempre a volta à situação, tornando-a a seu favor. São muitas as anedotas em que o Zé Portuga dá a volta a franceses, americanos ou ingleses, mesmo que não saiba a língua deles. De facto, para se ganhar uma discussão não é necessário entender uma palavra do que o outro diz (atente-se nas discussões que duas crianças podem ter quando ainda não sabem falar).
Eis o relato ipsis verbis de outro campeão amigo, quando me contou uma interação que teve com um turista, de nacionalidade esquecida, mas irrelevante para o caso:
— O estranja chegou ao pé de mim, todo galifão, e disse-me: “pá pá pá pá pá!” E eu “pá pá pá”, o quê, pá? Ficou logo a piar fininho. “Pá, pá, pá…”
Disse-lhe estar perante uma vitória clara e onomatopeica, ao que respondeu de imediato: “não tens noção”.
Até a nossa ancestral capacidade de desorganização pode tornar-se num trunfo a nosso favor, se tivermos aquilo que chamo de “mentalidade de campeão tuga” — um mindset de autoconfiança que,não sendo suficiente para resolver o problema, chega e sobra para que ninguém faça pouco da gente. Como no caso da célebre anedota “da merda e do balde”, em que o desgraçado que foi parar ao inferno tem a sorte de escolher a “sala portuguesa” onde os dejetos e o objecto citados só existem “à vez”, por lusa incapacidade de gestão. Ou mesmo quando um nosso compatriota é alvo de um poder maior, consegue transformar eventual derrota numa vitória claríssima, nem que por goleada passivo-agressiva. E aqui gosto sempre de utilizar o brilhante exemplo dado por Miguel Esteves Cardoso do português que, após reprimido pelo chefe no escritório, conta o sucedido ao colega: “nem lhe disse nada…ficou cá com um melão!”. O lado bom de ser-se um campeão é conseguir transformar potenciais fracassos em categóricas conquistas. E, se isso só pode ser bom para a autoestima, não deixa de ser contraproducente para o humor: as histórias que alguém conta sobre o seu próprio êxito tendem a ter menos piada. Tenho pena, porquanto sinto que a história de D. João VI, que deixou os invasores franceses “a ver navios” no início do século XIX, tinha excelente potencial para ser uma fábula antecipada do Bravo Sir Robin, dos Monty Python.
Outros povos sofrem do mesmo mal, certamente, e para muitos não é por uma questão de dimensão territorial. Se as nossas anedotas, de modo geral, nos colocam a vencer contendas a espanhóis, franceses, ingleses ou americanos, é porque existe uma ideia colectiva intrínseca de que eles “têm a mania que são campeões”. Mas porventura alguns deles terão outra capacidade de contar histórias em que são perdedores. Não sei, tenho sempre dificuldades nestas comparações. Talvez me falte a certeza de um campeão.
De uma coisa podemos estar certos: estes utilizadores extremados do grau superlativo relativo de superioridade estão um pouco por todo o lado. E, como é óbvio, não foi um deles que inventou o ditado “se não podes vencê-los, junta-te a eles”. Mas é isso mesmo que me resta fazer. A partir de hoje vou passar a valorizar mais os meus feitos. Palavra do melhor cronista da minha rua. Pelo menos entre os números 37 e 38. Enquanto a casa do 37 não for ocupada.