‘Se Beethoven Pudesse Ouvir-me’, de Ramon Gener, é uma amálgama de artes

por Cátia Vieira,    10 Setembro, 2017
‘Se Beethoven Pudesse Ouvir-me’, de Ramon Gener, é uma amálgama de artes
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Acabo Se Beethoven Pudesse Ouvir-me, de Ramon Gener, e salto para a secretária. Temo esquecer tudo o que li e aprendi. Em 247 páginas, familiarizei-me com inúmeros artistas, descobri histórias insólitas e curiosidades do universo artístico e conheci a experiencia vivencial de Ramon Gener. Acabo este livro como quem conheceu Mozart e partilhou momentos com Beethoven, tenho a sensação de ter interagido com Johnny Cash e rido com Rossini. Quem sabe, vivi com os quatro protagonistas de La Bohème, num apartamento decadente, no coração de Montmartre. Vivi tudo isto, porque Gener decidiu partilhar. Afinal, o próprio autor afirma, num prólogo humilde e honesto, que escreveu esta obra para partilhar e eu afirmo que o verbo de eleição do leitor será descobrir. Não tenho dúvidas: o seu desejo cumpriu-se.

Se Beethoven Pudesse Ouvir-me divide-se em inúmeros capítulos cujos títulos se assumem como um ingrediente da música e também da vida. Gener declara inclusive a relação íntima entre esta forma de arte e a existência, defendendo a transversalidade da música. Assim, vai anunciando todos os seus componentes: desde a imaginação, ao sentimento, à paixão, à hibernação, à partilha até à própria capacidade de chorar.

A música afirma-se como o seu comboio, no qual vai entrando e, eventualmente, abandonando. O autor refere Oscar Wilde para explicar a sua relação eterna com a música: “(…) a melhor maneira de vencer a tentação é sucumbir a ela, foi o que fiz. Sucumbi à música. A minha cabeça pensa sempre em e com música. Sempre”. Porém, Wilde não será a única referência. Este texto evidencia a bagagem intelectual e artística que proporcionou o crescimento de Ramon Gener. Além de músicos, mencionará filósofos, escritores, cineastas, cientistas e políticos, transformando este texto numa amálgama de artes e de conhecimento.

Ainda que explore diversas linguagens artísticas, este texto discute música. Falar de música é falar de sentimentos; para falarmos de sentimentos, precisamos de escutar. Gener revela-nos que, nos primórdios do cinema, a música não visava emocionar ou sensibilizar os espectadores, mas abafar o ruído dos projectores. O primeiro cineasta a aperceber-se da potencialidade da aliança entre a arte musical e o cinema foi o realizador soviético Sergei M. Einstein. Eis como surgem as bandas sonoras. Sobretudo, escutar é fundamental, porque nos transporta, porque nos permite sentir. Segundo Gener, utilizamos a música para o nosso próprio fim; usamo-la e escolhemo-la. Não é ela quem nos escolhe. Já Leonard Bernstein havia concluído que “a música não significa nada em si mesma. São apenas notas. Apenas sons. Porém, sons que geram sentimentos”.

Todavia esta possibilidade de sensação é apenas concedida perante a existência de paixão – outro dos ingredientes da criação musical. Gener associa à passionalidade verbos como arriscar, experimentar, aproveitar e viver; e máximas como carpe diem, isto é, aproveita o dia. Para sustentar a sua perspectiva, serve-se do filme Dead Poets Society, realizado por Peter Weir, no qual Keating relembra aos seus alunos a importância e a fugacidade do tempo:

«Aproveitem o dia enquanto são jovens, tenham atenção ao uso que vão fazendo do vosso tempo, porque somos alimentos dos vermes. Porque só vão ter um número limitado de Primaveras, Verões e Outonos. Um dia, embora não acreditem, cada um de nós deixará de respirar e morrerá.»

Gener explora, ainda, o conceito de génio – uma noção assaz romântica que se impregnou na figura de artista e se alastrou a todas as artes. Afinal de contas, ao pensarmos o artista, pensamo-lo como um indivíduo de comportamentos pouco sociais, que têm uma estabilidade mental um tanto frágil e que, por vezes, recorrem a refúgios nas drogas ou no álcool para encontrarem evasão ou inspiração.

Ser ou ter um génio pode revelar-se importante na criação artística. Porém, segundo o autor catalão, termos a capacidade de olhar o nosso eu e de nos autoconhecermos evidencia-se bem mais fundamental. E, afinal, quem é Ramon Gener?

Gener ingressou, aos seis anos, no Conservatório do Liceo para estudar Piano e Solfejo. Contudo, o método de ensino desagradava-lhe e serviu-se da imaginação para escapar a essa realidade. Afinal, o próprio Mozart – como todos os artistas – criava, socorrendo-se dela:

“Mas, de repente, deteve-se e disse: «Isto não pode ser tocado. Tenho a mão direita numa extremidade do teclado e a mão esquerda na outra e aqui no meio há uma nota que deve ser tocada ao mesmo tempo. Isto é impossível.» Então Mozart exclamou num tom vitorioso: «Ganhei! É perfeitamente possível tocar a peça.» Sentou-se ao piano, começou a tocar e, quando chegou ao ponto em que Haydn não conseguiu prosseguir, Mozart tocou a nota do meio com a ponta do nariz.”

Porém, a imaginação desprovida de acção e de atitude não passa de uma idealização e de projecções interiores. Assim, Gener começou a ser impertinente com os professores para, mais tarde, se recusar a tocar os instrumentos. Revoltado, negou-se a fazer música e, consequentemente, pediram que abandonasse o Liceo. Perdeu, assim, o primeiro comboio da música.

A terminar a sua adolescência, cruza-se com Victoria de Los Angeles, uma famosa cantora de ópera. Encantada com o talento de Gener, oferece-se para ser sua professora de canto. O autor do texto embarcava, assim, na sua segunda viagem musical. Estuda com Victoria e, mais tarde, parte para a Polónia para prosseguir os seus estudos.

Findo o seu percurso de aprendizagem, regressa a Espanha para iniciar a sua carreira na ópera. Elaborando um jogo de palavras e de contextos, Gener compara a sua incipiente carreira musical ao universo futebolístico, afirmando que foi jogando entre a primeira e a segunda divisão. Apercebe-se, nesse momento, que talvez nunca chegaria a ser o Messi da ópera.

Contudo, quem não sabe o quão difícil é abrir mão de um sonho para a vida? A questão coloca-se: como fazê-lo? Como nos afastamos do sonho? Uma decisão eventualmente terá de ser tomada, mas pelo caminho teremos de de chorar, afirma Gener. Johnny Cash escreveu: “You’re gonna cry, cry, cry and you’ll cry alone, / when everyone’s forgotten and you’re left on your own. / You’re gonna cry, cry, cry”[1]. Afinal, chorar – assim como a capacidade de partilhar – liberta-nos, alivia-nos e consola-nos. Livre, abandona o canto e, consequentemente, o seu segundo comboio musical. Como Gener afirmou:

“Teria dado a vida para chegar ao Liceo e dizer, como Júlio César depois da sua vitória na batalha de Zela: «Veni, vidi, vici» (Vim, vi, venci). Mas, em vez disso, a única coisa que pude dizer foi: «Veni, vidi, flevi» (Vim, vi, chorei).”

Após um período de hibernação, reflexão e autodescoberta, apercebe-se que partilhar o seu conhecimento musical é a chave. Por conseguinte, Ramon Gener divide-se actualmente entre conferências, palestras e apresenta o programa de televisão This is OperaIsto é Ópera (RTP2).

A partilha é indubitavelmente o leitmotiv deste texto, que se demarca por uma honestidade e fluidez incríveis. Ademais, a fidelidade de Gener à música é tanta que, por vezes, tende, de modo inocente, a olvidar ou descurar o potencial de outras artes, como a literatura. Ao contrário do que afirma, um texto – bem como uma música – admite uma vasta possibilidade de interpretações. E, por admiti-lo, Se Beethoven Pudesse Ouvir-me chega a nós como um atestado da nossa herança cultural e um guia para o porvir.

[1] “Vais chorar, chorar e chorar sozinho. / Quando te tiveres esquecido de todo o mundo e tiveres ficado sozinho. / Vais chorar, chorar, chorar.”

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