LISB-ON Jardim Sonoro: a lenda Tony Allen e a estrela Nina Kraviz
Depois de um primeiro dia apresentado pela Red Bull Music Academy, com nomes como o lendário Sven Väth, o duo de techno experimental Kiasmos, o francês Etienne Jaumet e o ensemble nacional Space Machine, o LISB-ON voltou ao Parque Eduardo VII para mais um dia cheio de boa onda e muita música electrónica, com espaço para algum jazz, soul e funk. Sábado, o dia do meio, foi construído para agradar ao público português. Tal parece ter surtido efeito, dado que os bilhetes esgotaram. No entanto, há que dar uma palavra de apreço à organização, que não encheu demasiado o espaço, permitindo ao público sentir-se livre nos seus movimentos, algo crucial num festival como este.
Quando chegamos, vamos espreitar uma das novidades: o novo palco Carlsberg Hillside, onde João Tenreiro já se encontra a fazer os discos da sua enorme colecção rodar. As estantes por trás de si estavam cobertas de plantas e discos, numa fusão de música e natureza que é o mote deste Jardim Sonoro. Já no ano passado tínhamos assistido ao seu set inaugural do último dia, em que fez desfilar clássicos brasileiros, funk e outros estilos feel good. Sem se repetir, voltou a pôr a (ainda) pouca audiência que se encontrava à sua frente a dançar com um sorriso na cara.
Às 16:30, o festival começa logo a jogar um dos seus grandes trunfos: Amp Fiddler. O artista com mais de 25 anos de carreira, que já colaborou com astros como Prince ou George Clinton, veio emprestar o seu soul e funk à tarde lisboeta solarenga. O público dispersava-se pelas sombras do recinto, movendo-se com o sol como uma trupe de girassóis dançantes que, ao invés das flores, seguem a sombra. Sozinho em palco, o artista solta a sua música irrequieta que soa familiar. As boas intenções de Amp Fiddler, a sua voz quente e figura descontraída garantem que a homenagem à música da sua terra natal, Detroit, fica bem feita. Algum improviso nas teclas e passos de dança contribuem para o cenário de alegria. O concerto deixa-nos de água na boca para o disco a ser lançado em breve que, a ter tanta ginga como o concerto teve, será muito bom.
Numa duplicação de anos de carreira, chega-nos ao palco o mestre Tony Allen. O baterista nigeriano é conhecido como um dos pioneiros do afrobeat, para o qual contribuiu com os seus ritmos complexos. A lenda que cunhou o termo, Fela Kuti, afirmou que não existiria afrobeat sem Allen. Largos anos se passaram, e após várias colaborações e experimentações estilísticas, o artista apresentou-se em Lisboa com um conjunto de jazz, a fazer o seu tributo ao também baterista Art Blakey, como explica Allen a meio do espectáculo. O concerto que se anunciara como uma infusão de ritmos africanos dançáveis, acabou por acalmar os ânimos do público, que assistia a um verdadeiro evento musical na história deste festival. Sentia-se que esta era uma oportunidade facilmente irrepetível, a de ver uma lenda viva em acção.
O concerto foi essencialmente um mergulho na sonoridade do jazz clássico – uma estreia neste festival – com as ocasionais pausas para os exímios solos do protagonista, que dava assim o seu cunho a canções que lembravam outros grandes nomes de um dos géneros mais antigos da música. A competente banda que acompanhava Allen por vezes simplesmente parava e admirava, provavelmente sentindo o privilégio de partilhar o palco com ele, principalmente o formidável teclista, que por vezes se dirigia ao público com uma alegria partilhada por toda a gente que se encontrava naquele espaço. Amp Fiddler até voltou para dar uma mãozinha nas teclas e dar um pouco mais de groove, numa mistura que encarna o espírito ecléctico do festival. É daquelas coisas que o tornam mágico.
Para saciar a vontade de abanar a anca, vamos ao palco secundário espreitar o set do produtor italiano Lerosa, que veio substituir o projecto house Dream 2 Science, que cancelou a sua actuação no festival. Uma centena de pessoas demonstrava os seus melhores passos de dança ao som de house que se afasta do convencional, com uma forte presença de sonoridades dos anos 80, como sintetizadores escorregadios ou ritmos que vão beber à disco. Mais um bom punhado de pessoas assistia sentada, por baixo das árvores, aproveitando a descontracção do palco que parecia um segredo escondido, naquela encosta.
Num dia até então marcado por lendas, o foco voltou-se para o mundo electrónico feminino, numa escolha louvável por parte da organização. O primeiro desses nomes é Cassy, cujo sorriso de orelha a orelha parecia não coadunar com as batidas fortes que debitava para o público do Lisb-ON. O seu techno mais pausado, possante e elegante, com build-ups intensos, puxava pelo público que celebrava cada drop. A estrutura mantinha-se semelhante, mas à medida que o tempo ia passando, a música tornava-se cada vez mais desenvolvida, caminhando em direcção a um local onde acabou por não chegar, talvez por falta de tempo. O que ficou foi o poderio sonoro e a aura de Cassy, que transmitia tranquilidade e nos fazia sentir confortáveis o suficiente para nos soltarmos, caso o quiséssemos fazer.
O pináculo da noite, para a maioria do público, foi o set da russa Nina Kraviz, um dos nomes incontornáveis da cena clubbing actual. Nina já havia estado presente neste festival em 2015, com um alinhamento algo linear, que não foi para além das batidas profundas características do techno, com poucas variações. Desta vez, o ritmo foi elevado por uma boa dose de experimentação, com melodias indutoras de transe e até alguns elementos noise, que trouxeram algo de novo à repetitividade do estilo. A celebração da audiência foi reciprocada pela artista, que foi até além das horas de fecho do festival, criando uma discoteca ao ar livre até por volta da 1 da manhã.
Entretanto, o palco secundário era fechado por Sebastião Delerue, também conhecido por De Los Miedos, fazendo-se acompanhar por Nomad. As suas qualidades de vinyl-digger estavam bem prementes na selecção musical, em que ritmos africanos foram os principais protagonistas do início do set. O crioulo era a língua de ordem e o povo abanava-se como se estivesse num baile qualquer em Angola, aquecendo-se em preparação para a saída que provavelmente se seguiria.
A noite lisboeta estava convidativa e a tarde já tinha servido para desenferrujar as pernas. Aqui reside um dos conceitos mais interessantes do festival. Uma matinée descontraída desemboca num início de noite que incita o público a continuar em festa pela noite dentro, algo fomentado pela localização privilegiada do festival, mesmo no centro de Lisboa. O Lisb-ON funde-se com a vida da cidade e torna-se numa parte vital da mesma, durante estes três dias.
No dia seguinte, o festival voltou com um dia assumidamente mais electrónico, que contou com nomes como DJ Koze, Motor City Drum Ensemble ou Maayan Nidam.
Fotos da autoria de Sara Miguel Dias