“The Woodcutter Story”, de Mikko Myllylahti: o conto folclórico e sobrenatural que aterrou no Festival de Cannes
Este artigo pode conter spoilers.
Há Lynch e Kaurismaki (mas não só) na estreia em longo formato do finlandês Mikko Myllylahti — já agora, a concorrer também com “Alma Viva”, da portuguesa Cristèle Alves Meira.
O cinema finlandês tem-nos habituado a lidar com um sorriso nos lábios diante a excentricidade das suas personagens, embora com um sentido de humor que jamais abandona a seriedade. É daí que vem o cinema de Mikko Myllylahti, embora se possa talvez aproximar de um surrealismo mágico que não tem receio de levantar questões filosóficas. Existe um pouco de tudo isso no bucólico, e por vezes transcendente, “The Woodcutter Story”, o filme do cineasta, argumentista e poeta que concorre na Semana da Crítica, no Festival de Cannes. Nesse sentido, concorre também com “Alma Viva”, da portuguesa Cristèle Alves Meira, apresentado na mesma secção. Tal como João Gonzalez, com “Ice Merchants”, embora no concurso das curtas.
Ao encarar a bucólica e folclórica história deste estoico e passivo lenhador da Lapónia Pepe (Jarkko Lahti, o Olli Maki) não teremos necessariamente de invocar de imediato o nome de Aki Kaurismaki, mesmo que isso nos venha à cabeça. Até porque, naturalmente, não será o único. Aliás, essa herança finlandesa tende até a mitigar-se com o surgimento de cineastas como Juho Kuosmanen, a quem Mikko assinou o guião de “O Dia Mais Feliz na Vida de Olli Maki”, de Juho Kuosmanen, vencedor do prémio Um Certain Regard, em 2016.
Independentemente das várias influências presentes na história deste lenhador, e são algumas como veremos, faz sentido salientar a mente poética do cineasta, de resto vertida em quatro coleções de contos poéticos com sucesso assinalável no seu país. E percebe-se que é essa via que conduz as diversas personagens bizarras desta pequena vila, como como um barbeiro sedutor, uma criança apaixonada com surpresas para revelar, ou até um performer com atributos psíquicos. Ou, por fim, os mineiros que vieram alterar radicalmente a paisagem e o ritmo da vila, desde que a actividade ligada à madeira foi reconvertida pela extracção de minerais, emourrando tantos para o desemprego.
É assim, entre os momentos bucólicos que poderemos ser visitados por uma cena de inesperada violência, ou até mesmo, por um surrealismo desarmante, que se sente a a possibilidade de uma esperança, mesmo no meio da maior calamidade. Talvez aí faça sentido a sugestão das questões filosóficas que passam a atormentar algumas personagens, com os seus dilemas espirituais, tal como o próprio sentido da vida, inseridas na possibilidade do alcance de uma certa transcendência, ou mesmo viagem espiritual, no estilo a que David Lynch nos habituou. Provavelmente, sem abandonar um sorriso nos lábios.
A esse propósito cabe saudar o trabalho muito competente da fotografia, captada em 35mm, bem como a luz precisa de Arsen Sarkisiants, inscrita dentro de normas de um certo cinema narrativo clássico. De resto, a tirar o melhor partido dos ambientes de cores suaves e adereços do design de produção de Milja Aho. E dos décors naturais da região da Lapónia, a norte da Finlândia, fazendo fronteira com a Noruega, Suécia e Rússia (e arrasada durante a 2GM durante a retirada nazi). Região que é também conhecida pelos seus fenómenos sobrenaturais, como a aurora boreal, dimensão que o guião de Mikko aproveita, embora com nuances mais livres. Surreais mesmo, em referência directa ao absurdismo de Buñuel.
Aliás, é o próprio realizador quem assume essa herança nas notas de produção do filme. E talvez a mais inesperada seja a combinação entre o realismo e a magia que Vittorio De Sica captou em “O Milagre de Milão2. Lá está, a tentativa de almejar a transcendência. Mikko que assume ainda o método de representação de Kitano (sobretudo em “Sonatina”, 1993), bem como o absurdismo e surrealismo de Buñuel, ou alguma proximidade ao David Lynch de “Veludo Azul” (1986) ou “Um Coração Selvagem” (1990).
Se a ideia era abraçar (ou pelo menos não questionar) o lado mais absurdo, ou a ambiguidade, como matéria prima para não perder a sua essência, o filme parece-nos conseguido. Mesmo que este conto dificilmente se consiga desprender das suas múltiplas referências. Mesmo quando procura esquivar-se do rótulo Aki Kaurismaki, pela forma como trabalha os diálogos. No tal acento tónico do absurdo.