Quando o Walter White e o Dr. House entram na sala de aula
Tive a oportunidade e o privilégio de ter dado aulas durante este semestre na instituição de ensino à qual me encontro filiado. Tinha algum receio, não por não ter a capacidade de comunicação que algumas pessoas reconhecem, ou por ter que dar aulas a alunos do ensino superior quase da minha idade e em que o registo é um pouco diferente em comparação com o ensino básico e secundário. Foi a primeira em toda a minha vida que o fizera e o grau de exigência era grande. No meio universitário os alunos estão num nível maior de exigência, não só a nível da avaliação, mas também a nível do rigor de ensino. Há que estar à altura das questões pertinentes que possam surgir e nem sempre é fácil esclarecê-los, pois muitas vezes surgem perguntas cuja resposta não existe. São essas mesmas perguntas que fazem com que o ensino seja uma mais valia, pois existem inúmeras para as quais faltará sempre uma resposta.
Contudo, posso dizer que foi uma experiência altamente gratificante ter dado aulas de uma cadeira de técnicas experimentais e de caracterização de materiais, até porque sempre considerei o acto de leccionar como algo bastante nobre e de enorme responsabilidade. Considero também que o meu ar ainda relativamente juvenil facilitou o meu contacto com os estudantes nas aulas, o que acabou por deixá-los mais à vontade, sem medo de perguntar o que quer que fosse.
Numa das experiências que envolvia medições magnéticas, no decorrer da explicação sobre a classificação dos diferentes tipos de materiais quanto ao seu comportamento magnético, lembrei-me de uma cena que vi numa das séries mais emblemáticas da minha geração e que facilmente se poderia enquadrar no contexto. Tendo em conta que os estudantes em questão não eram muito mais novos do que eu, resolvi tentar a sorte e lancei a pergunta:
— Algum de vocês viu “Breaking Bad”?
Nem todos disseram que sim, mas os que responderam afirmativamente fizeram-no com algum entusiasmo pois sabiam que à partida iria sair dali uma contextualização a um dos episódios. Lembrei-me então da cena em que as duas personagens principais criam, com a ajuda de sucateiros, um super magnete que conseguiria atrair fortemente o computador portátil confiscado que continha conteúdos que os incriminavam. Durante a sua testagem, o responsável pela montagem pede que todos retirem tudo o que seja carteiras, telemóveis, chaves, fios, pulseiras e anéis. Walter White, professor de química e protagonista desta série, faz sinal ao dizer que a sua aliança é de ouro e que por isso não há problema. Por ter conhecimentos na área sabe perfeitamente que o ouro é diamagnético e que não será atraído de forma alguma pelo magnete. Rapidamente fez-se luz nos estudantes que facilmente associaram este episódio da série ao contexto da explicação. E de facto, no que toca a explicar os fenómenos mais comuns da química, e até da física, “Breaking Bad” é uma série perfeita para isso mesmo, desde o primeiro até ao último episódio. Porém, perante um leque enorme de séries que surge ao longo dos anos, não é certamente a única.
Dei por mim a pensar que por acaso, quando ainda era estudante de licenciatura, ocorreu uma situação semelhante comigo numa das aulas de química analítica, mas com outra personagem a entrar em cena. Quando chegou a parte da complexometria e das titulações complexométricas, uma técnica que permite detectar metais em solução, um dos professores responsáveis pela disciplina a certa altura perguntou à turma:
— Algum de vocês viu “Dr. House”?
Isto quando se abordou o célebre EDTA (ácido etilenodiamino tetra-acético), nomeadamente nos complexos metálicos deste composto e na sua utilização para a técnica em questão. Num episódio de Dr. House, uma paciente que é suspeita de estar envenenada com chumbo é tratada através de uma terapia que envolve a utilização do EDTA, sendo-lhe administradas pequenas quantidades deste composto por via intravenosa. O EDTA, que acturá como agente quelante, conseguirá “agarrar-se” ao metal em questão, formando um complexo, removendo-o assim do corpo da paciente. Na altura nem toda a turma tinha prestado atenção ao episódio, e alguns nunca tinham visto a série. Lembro-me também que depois da contextualização, o professor em questão referiu:
— Pois é. Damos-vos este exemplo e ainda assim surgem umas luzes em vocês. Daqui por uns anos, não fará sentido falarmos do Dr. House porque já será uma série totalmente ultrapassada e que não terá qualquer significado para os estudantes.
E a verdade é que ainda tive sorte em ter dado o exemplo do episódio de Breaking Bad e alguns estudantes terem percebido o contexto. Se o fizesse daqui a dez anos, o efeito não seria o mesmo. Assim como hoje imagino que os professores que me deram química analítica tenham que arranjar outro exemplo para além do Dr. House aos estudantes, quando chegam ao capítulo da complexometria.
Muitas vezes é necessário que haja um enquadramento de histórias que possam facilmente encaixar no contexto de uma explicação numa aula. As séries e os filmes são óptimos para isso, mas nem todas as personagens são eternas. Para toda uma geração, o Walter White e o Dr. House são imortais dado o carisma e o enorme impacto que tiveram. Dentro da sala de aula, com a transição das gerações, estas personagens são voláteis e darão oportunidade a outras com igual brilho. Há dez anos, fazia sentido contextualizar o Dr. House num exemplo de uma aula química analítica. Hoje não faz muito sentido porque a série já está ultrapassada e a personagem já nada diz aos estudantes. O mesmo acontecerá certamente também com o Walter White daqui por uns anos, mas por enquanto, e pelos vistos, consegue ainda transmitir um certo significado quando é evocado. Em contrapartida, outras personagens vão surgindo com exemplos que se possam facilmente enquadrar, mas grande parte delas acabarão por ser sempre passageiras. Há que estar atento pois por vezes estas mesmas personagens são difíceis de encontrar. Mas quando as encontramos abrem-nos as portas para a compreensão de um mundo complexo, cheio de mistérios, e que se torna bem mais simples graças à presença das mesmas.