Brockhampton e o orgulho por trás da singularidade de ‘SATURATION’
Ao longo da curta mas extensa história do hip hop as colectivas e grupos tiveram e têm um papel preponderante na expansão mundial do género. As que despertam mais interesse cativam-nos através da acutilância e qualidade dos seus membros mas é também importante referir a química musical que está no seio destes grupos, a maneira como as rimas de um membro se relacionam com o verso cuspido pelo rapper seguinte. Há vários exemplos desta camaradagem musical que se revelou frutuosa para a arte das rimas: os nova-iorquinos Wu-Tang Clan, uma das forças mais vorazes do hip hop nos anos 90, os incontornáveis N.W.A, impulsionadores do gangsta rap, e, mais recentemente, grupos como A$AP Mob, Odd Future Wolf Gang Kill Them All (Odd Future para os amigos) ou Black Hippy (que conta com Schoolboy Q e Kendrick Lamar) mostram a honrada tradição de unir pessoas diferentes com experiências diferentes sob uma só identidade. Brockhampton, a mais recente colectiva a surgir na história do hip hop, parece pronta para abalar o género.
Esta revolução calculada começa logo pela definição de colectiva. Brockhampton intitulam-se como uma “All American Boy Band”, suavemente rejeitando o “status quo”. Mas a conotação adequa-se: entre o elenco de artistas podem encontrar-se rappers, produtores e até designers. Conheceram-se na Internet e mais tarde mudaram-se todos para a mesma casa, passando da comunhão criativa para algo mais sério e que mostra um maior empenho em vingar na indústria musical. A primeira mixtape surge em 2016, intitulada ALL-AMERICAN TRASH, e serve como uma introdução ao grupo. É difuso, com vários skits e momentos menos concentrados. Nota-se um certo desconforto instrumental e nas rimas, e uma falta de química entre os vários intervenientes, aquela facilidade em se desdobrarem uns nos outros sem perderem a sua própria identidade. Mas em SATURATION a história é outra: o primeiro álbum de Brockhampton está recheado de batidas bem produzidas e uma honestidade lírica tocante da parte dos vários membros da boy band. Ao longo do álbum vão tocando em assuntos relacionados com a identidade humana e esse é o principal tema do álbum. A aceitação do eu, as quezílias em que nos envolvemos com a nossa mente, o sentimento de exclusão, tudo isto é dissecado sob o ponto de vista dos jovens norte-americanos. Além de músicas são também ouvidos alguns skits no decorrer do projecto, que separam os vários “capítulos” e funcionam um pouco como a “alma” do álbum e a introdução a diferentes temas, tocando em assuntos como a destruição da falsidade, pensamentos suicidas e a procura do significado da existência.
A jovialidade e intensidade na entrega de Brockhampton demonstram algumas semelhanças com Odd Future, grupo que Kevin Abstract (nome artístico de Ian Simpson, um dos membros fundadores e o frontman do grupo) revelou ser uma influência. Mas enquanto que Odd Future se destacavam especialmente pela abrasão e a atitude de “fuck ‘em all” que demonstravam, Brockhampton prezam pela definição de identidade, pela busca de significado interior e de aceitação de quem somos. Mas não deixam de ser temerosos nessa abordagem: “HEAT” introduz o álbum de forma “assustadora” e possante, mostrando logo que Brockhampton não está para brincadeiras quando se decide a isso. O baixo comichoso e distorcido contribui ainda mais para uma atmosfera de desconforto, com o grupo a mostrar-se invicto e dono do mundo que esmaga entre as suas mãos. Apesar de a destreza lírica dos membros de Brockhampton não ser especialmente arrebatadora, a sua atitude compensa bastante, algo evidente em “MILK”: o refrão não podia ser mais simples mas soa tão resoluto e verdadeiro que a simplicidade é bem-vinda (destaque para a frase “I gotta get better at being me”, uma verdade universal e que para muitas pessoas é a verdade que têm dificuldade em absorver).
Há um equilíbrio entre momentos mais sérios e outros mais descontraídos, de celebração e festa. “GOLD”, que soa num dos primeiros momentos do álbum, é claramente uma música “orgulhosa”: é discutida a opulência e a magnificiência de uma crew que está na maior, usando a riqueza física como metáfora para o orgulho na “riqueza” mental, no brio em existir como indivíduo, uma mensagem auxiliada por um hook infeccioso (“Keep a gold chain on my neck/ Fly as a jet, boy, better treat me with respect”). A maior parte dos hooks surge cortesia de Kevin Abstract e nota-se a sua habilidade e virtuosismo para criar melodias infecciosas que tão depressa não nos saem da cabeça. “FAKE” mostra outro exemplo de um hook contagiante e uma música inteligente: de voz alterada, Dom McLennon, Ameer Vann e Merlyn Wood apontam o dedo à indústria musical, disposta a (quase) tudo para vender o produto, até que se ultrapassa o limite definido pelos magnatas, silenciando os artistas e a sua expressão (“I look like a Somali pirate (don’t say that!)/ Failed middle school and college (don’t say that!)”). No outro espectro, temos músicas como a poderosa “CASH”, composta por versos curtos mas eficazes, uma das músicas mais políticas e conscientes do álbum, que discute homofobia, racismo e violência nas comunidades negras, terminando com a frase “Me against the world” proferida como reflexão, acompanhada por uma guitarra que destoa do instrumental normal de uma música de hip hop. Há uma mistura entre músicas cantadas e declamadas, algo reminiscente do último projecto de Kevin Abstract, American Boyfriend: A Suburban Love Story, e a sonoridade de músicas como “SWIM” ou “WASTE” lembra Frank Ocean e o seu fantástico álbum blond.
SATURATION é um álbum fácil de gostar. As batidas são muito apelativas e brilham bastante, os hooks apetecíveis alojam-se debaixo da pele num instante (enquanto escrevo, “BANK” ressoa na minha cabeça que nem um earworm sem vergonha). Além da boa composição instrumental, a emoção que os temas transmitem por meio dos seus interlocutores é verdadeiramente sincera e outro dos grandes trunfos de Brockhampton neste projecto. A atitude confiante dos rappers é contagiosa e são sem dúvida uma surpresa agradável no panorama musical, e a prova de que há muito mais do que rap no hip hop, há até espaço para a primeira boy band formada na Internet encantar fãs com a sua visão honesta, clara e que refere o orgulho em ser quem somos. Em “TRIP” Kevin Abstract canta de forma pensativa “Today, I’ma be whoever I wanna be” e essa é a principal ilação a retirar do álbum: no final do dia, a pessoa com quem interessa estarmos em paz é quem nos cumprimenta ao espelho, sem nunca deixarmos de nos esforçar para sermos sempre fiéis a esse reflexo, à ideia de conservar a nossa identidade e sermos a melhor versão do nosso ser singular.
Músicas preferidas: “GOLD”, “FAKE”, “SWIM”, “CASH” e “MILK”
Músicas menos apelativas: “STAR” e “BUMP”