Entrevista. Tiago Bartolomeu Costa: “António Campos é o mais extraordinário dos realizadores portugueses que ainda não conhecemos”
Numa altura em que a Cinemateca Portuguesa / Museu do Cinema concretiza e propicia uma autêntica redescoberta do cinema português, nomeadamente com o projecto FILMar, impõe-se a descoberta da retrospectiva do cinema de António Campos, integrada na programação do 30.º Curtas Vila do Conde. Foi este o pretexto para o contacto com Tiago Bartolomeu Costa, coordenador do projecto FILMar da Cinemateca Portuguesa, e para uma pequena conversa por email que vos trazemos agora aqui.
Qual é, no seu entender, a importância hoje na redescoberta do cinema de António Campos? Sobretudo por nos ajudar a organizar um passado que ameaça tornar-se cada vez mais longínquo.
A obra de António Campos não se extingue na sua relação com o mar, e se a água é um elemento presente em muitos dos seus filmes, o mundo que está a desaparecer, transformou-se num outro, aquele onde somos herdeiros de uma memória que, agora, existe através do cinema, mas, sobretudo, vive através da nossa experiência de espetadores. Não estou certo de o desaparecimento do mundo tal como Campos o viu seja, em si mesmo, um problema, considerando que muita da realidade por ele fixada pode ser traduzida por miséria, ausência ou poucas condições de viva, salubridade ou sobrevivência. Se ao cinema de Campos podemos reconhecer uma poética do real, também podemos ler nela uma miséria social decorrente de opções políticas. Nesse sentido, aquilo para o qual o cinema de Campos nos alerta, é tanto uma dimensão imaterial — que hoje pode ser exótica e de contornos próximos do realismo mágico — como intensamente material, no que denuncia sobre as condições de vida. É um cinema de intervenção, ainda que possa parecer de registo, e um cinema político, porque estava implicado com o presente que era o seu e a proximidade que ninguém parecia ver.
Como definiria este cineasta que reivindica ainda o devido reconhecimento no nosso país?
O reconhecimento é um processo de partilha constante. Os filmes, de António Campos ou outros, precisam ser vistos, não só para lhes poder ser reconhecido um lugar de pertença na história do cinema, como precisam ser partilhados enquanto elemento constitutivo de uma memória coletiva. A Campos parecia importar uma relação de fixação de uma prática que, pelo cinema, se torna pertença e partilha de um modo de agir e de intervir social, cultural e politicamente. O seu cinema, se de proximidade, é-o de um modo que, então, seria novo, mas que hoje não é menos inovador, singular e disruptivo. Conhecer o cinema de António Campos será, também, a possibilidade de traçarmos linhas comuns e completas num cinema feito de permanentes experiências, impulsos e reações. Campos será o mais extraordinário dos realizadores portugueses que ainda não conhecemos, se nele não quisermos ver apenas o que ficou, mas o que diz a quem faz e vê cinema hoje.
Qual foi o critério da seleção do material exibido nesta mostra? Sendo que grande parte dos filmes selecionados correspondam ao projecto FILMar.
Começamos por identificar as condições das matrizes e materiais em depósito no Arquivo Nacional da Imagem em Movimento (ANIM), privilegiando as curtas-metragens, dado ser esse o perfil do festival. Depois, procurando um equilíbrio entre os filmes onde o mar tem uma presença significativa e determinante, e os títulos que melhor representem a singularidade do cinema de António Campos, definimos com o festival um modelo de apresentação que permitisse, dentro do calendário e duração de sessões, uma viagem por dentro desse universo.
“O reconhecimento é um processo de partilha constante. Os filmes, de António Campos ou outros, precisam ser vistos, não só para lhes poder ser reconhecido um lugar de pertença na história do cinema, como precisam ser partilhados enquanto elemento constitutivo de uma memória coletiva.”
Tiago Bartolomeu Costa
Apesar da relevância inegável de filme como “Albadraba Atuneira” e “Praia da Vieira”, temos a oportunidade de descobrir filmes menos vistos, como “A Invenção do Amor”, sobretudo pela forma intencional como aproxima a ficção do documentário ou, até, “O Senhor”, que quase parece um filme mudo (pois imagino que aqui a ausência de som não fosse intencional, como sucede em outros filmes). Qual é para si o factor mais importante do cinema do António Campos que merece ser redescoberto?
A reinvenção dos modelos narrativos, num período em que parecia pouco evidente estarmos, hoje, a falar de fluidez entre ficção e documentário, é a característica mais notória de um cinema que parece querer desenhar, para si mesmo, um canal e exercício expressivo e de expressão, muito para lá de uma autoria. É um cinema que se quer aproximar do que está a filmar, gerindo essa aproximação pela curiosidade, questionamento e espanto que, na montagem, ganha, estrutura e propõe uma cumplicidade de olhar com o futuro espetador.
Por fim, está prevista a digitalização, bem como a preservação da restante obra de António Campos? A Cinemateca possui a integralidade da filmografia ou há já filmes perdidos?
António Campos legou à Cinemateca a preservação do seu histórico fílmico, e esse trabalho, iniciado há alguns anos com cópias analógicas, tem agora a oportunidade, através do FILMar, no que respeita aos filmes com uma relação direta ou indireta com o mar, ou na política continuada de preservação e digitalização, reforçada pelo programa PRR, de devolver os filmes a um público que, na sua grande maioria, não teve contacto direto ou, em alguns casos, tendo existido, apenas em contextos muito específicos. Os filmes passarão a estar disponíveis num formato que permite a sua mais ampla difusão, através dos cineclubes, festivais e distribuidores, bem como dos planos de promoção da literacia cinematográfica, potenciada agora pela recuperação e renovação do parque técnico logístico de exibição, nomeadamente na capacitação dos teatros e cineteatros de equipamentos de projeção digital. Ainda, está prevista uma edição em DVD, em moldes e calendário a definir.