Idade da meia-crise
Preço da gasolina acima de dois euros por litro, matérias primas em alta, inflação generalizada, escassez de microchips, subida das taxas de juros, resquícios de pandemia, guerra na Europa, ameaça nuclear. Até o meu amigo optimista concorda que estamos já a viver uma meia crise. “Meia” porque faltará ainda outra metade, a pior: se sofremos já na pele o aumento do custo de vida, a subida dos juros será sentida nessa segunda metade e, eventualmente, voltaremos a viver outra crise das dívidas soberanas, recessão económica, incremento do crédito malparado, problemas no sistema financeiro, enfim, tudo aquilo a que tivemos direito em 2011.
É, já vivemos isso. O problema é que eu agora tenho quase 42 anos.
Sinto que vou estar impedido de desfrutar da minha crise da meia-idade por esta idade da meia-crise. (O trocadilho pode ser manhoso, aceito, mas serve para dar título à crónica, o que me parece impecável e os tempos são de aproveitar o que surge).
Estou enfim na altura em que posso fazer os disparates que quiser com aceitável justificação: “coitado, está na crise da meia-idade”.
Sim, é certo que tive essa justificação antes: “coitado, é jovem”. Mas nessa altura não tinha dinheiro para grandes estragos, e nunca me meti em nada que me impedisse de arranjar trabalho e, assim, amealhar fundo de maneio para estourar quando chegasse à crise da meia-idade.
E entretanto vem o corona e depois o Putin, e o raio que os parta a todos. Como posso sequer almejar os devaneios próprios deste estádio da minha existência?
Está fora de hipótese adquirir um descapotável, já que é tão difícil encontrar um carro novo; e um usado mama tanto combustível que, ao preço atual, só serviria para dar meia dúzia de voltas e passar vergonhas!
Trocar a namorada de 40 por duas de 20? Impensável! Já viram o preço do pão?
Voltar a fumar? Impossível, o tabaco custa mais do dobro de quando fumava.
Álcool? Agora? Com ressacas do tamanho de um prédio?
Drogas? Ibuprofeno para as dores de cabeça, conta? (“And I never stepped on the cracks ‘cause I thought I’d hurt my mother”).
Fazer uma tatuagem? Aqui sigo a máxima do comediante Sebastian Maniscalco: “não colo autocolantes em Ferraris”. (No meu caso um VW Carocha, mas ainda assim).
Largar tudo e seguir uma vida dedicada à religião? Correr todos os campos onde joga o Benfica, seguir a equipa para todo o lado, gozando a vida entre roulottes de bifanas e bicas de imperial. Seria uma possibilidade se as minhas poupanças, remuneradas à taxa zero, não servissem apenas para meia dúzia de meses. E os últimos jogos a que assisti não me fizessem preferir ter ficado a trabalhar, por menor sofrimento.
Converter-me ao dudeísmo e passar o resto da vida afagando as partes baixas (próprias) enquanto passo os dias (sentado, nunca lançando) em salões de bowling nos States? Com o euro a desvalorizar face ao dólar? No way!
Talvez começando com pequenas coisas.
Há dias arrisquei a compra de uma t-shirt dos Nirvana que encontrei numa loja da Primark — um eloquente exemplo zeitgeistiano, quer da minha vida, quer do declínio da música alternativa. A camisola, de um tom cinzento-gasto que parece usada embora nova (o que diria disto a minha avó?), tinha as letras com o nome da banda na zona do peito e, por baixo, aquele smiley drogadão que é usado como seu logótipo, na zona abdominal (com esta anatomia, quase um eufemismo). Usei-a no sábado seguinte e, à noite, vi uma fotografia minha com ela vestida — ali estava eu sentindo-me com 16 anos, livre, rebelde, zero compromissos, regressado ao conforto da tristeza, pronto a enfrentar de novo o tormento adolescente envolto pelo mistério da Santíssima Trindade Cobainiana (Raiva, Angústia e Alienação). Para meu desalento, o retrato não mostrava o líder de uma geração. Ao invés, nele aparecia um totó de meia-idade, vestindo roupa nova-mas-ruça de uma icónica banda de há 30 anos, grávido de uma esfera amarela com cara de emoji, uma intumescência tridimensional que quase aparentava ser um organismo vivo. É este a minha imagem da crise da meia-idade na idade da meia-crise: um boneco amarelo gordo todo mamado. E o problema é que quase tive inveja dele. Imaginei um emoji de 40 anos, olhinhos de quem curte a vida com pouquíssimas inquietações, envergando uma t-shirt do grunge estampada com a imagem da minha face toda mocada. O que me levou a outras questões. É normal ter este tipo de imaginação? Será preocupante sentir inveja de um boneco? Ainda alguém diz “mocada”? Fará tudo isto parte do processo de envelhecimento?
Raios, pá, com este contexto que posso eu tentar para combater esta forma de insegurança sofrida por alguns indivíduos que, atingindo as quatro décadas de vida, se apercebem que o período de sua juventude termina ao passo que a idade avançada se aproxima? Sim, que posso eu inventar nesta adversa conjuntura económica? Crónicas? Sim, mas, sei lá, parece-me pouco rock ‘n’ roll.