A “Black Radio” de Robert Glasper despontou na Casa da Música
Fim de tarde de verão, tarde essa a de 19 de julho de 2022, que trouxe Robert Glasper e as suas três emissões da Black Radio ao Porto, nomeadamente, talvez, ao espaço mais devidamente preparado para albergar todo o esplendor da sua música: a Sala Suggia, da Casa da Música. Consigo, Glasper trouxe três dos seus habitués: o produtor Jahi Sundance, que abriu o concerto com uma mescla de samples do hip-hop — que, por si só, também acolheram os espectadores que se foram avolumando na Sala Suggia —; o baixista Burniss Travis (embora, no caso, o habitué seja Derrick Hodge) e o baterista Chris Dave. Ficou a faltar o rosto de Terrence Martin, decisivo na produção de Black Radio III, álbum que serviu de mote para esta tournée, já que foi lançado neste mesmo ano.
Depois dessa magia de Sundance, que polvilhou o recinto de imensos samples que prepararam devidamente o que se esperava, chegou a vez de entrar Glasper — que, para além dos seus rotineiros sintetizadores e teclados, também assumiu a voz — entrar com todo o seu esplendor. Foi ovacionado como se de um herói se tratasse, de um ícone, depois de o público estar algo morno com o arranque. Isso talvez explicará, de igual modo, a presença do Ministro da Cultura, Pedro Adão e Silva, ou do músico Rui Veloso, entre outras figuras mediáticas numa sala que estava praticamente lotada. Não obstante, a música deste artista sempre foi um registo muito singular, sendo um dos mais bem conseguidos músicos que conseguiu colocar vários géneros musicais em uníssono, em especial géneros com profundas raízes populares, nomeadamente nas comunidades afroamericanas.
Entusiasmado por se ter estreado no Porto, entre reconhecer algumas figuras no público até ser envolto pela rivalidade Porto-Lisboa (em meio de brincadeira, soltou um “fuck you, Lisbon”), Glasper abriu o livro. Entre medleys e covers — destacam-se as versões das imensamente conhecidas “Smells Like Teen Spirit”, dos Nirvana, e “Everything In Its Right Place”, dos Radiohead —, trouxe vários dos condimentos que compõem a sua aprofundada Black Radio. Embora sem os músicos com quem colaborou nas mais diversas faixas, não faltaram as presenças em espírito e em som, que Glasper tentou remediar (e bem) com a sua própria voz. Com grande sentido de humor e provocação à mistura, e munido dos seus copos com (alegadamente) água, o músico norte-americano abriu espaço a que outros pudessem brilhar. E que bem aproveitou esse espaço o baterista, Chris Dave.
Foi ele que, no fim das hostes, teria à espera a maior salva de palmas, concorrendo seriamente com Glasper. Quem não conhecesse o cardápio que se apresentava há semanas na agenda da Casa da Música poderia questionar se o líder do grupo era Drew ao invés de Glasper. Isto porque foi, em muitas ocasiões, ele que ditou os ritmos das faixas e dos diversos laivos de improviso que fizeram a música ao vivo mais apetecível e dinâmica, com rasgos ao alcance de mesmo muito poucos. Apesar de sentados, não deu como não soltar os membros superiores (e até os inferiores, a bater com os pés no chão) e de a cabeça não menear de um lado para o outro. De igual modo, destaque para um solo aterrador de Travis já bem perto do fim, a ligar uma espécie de encore que viria a encerrar o concerto com mais algumas das mensagens sampladas que caraterizam as músicas e os álbuns de Glasper. Mensagens essas com um forte tom laudatório em relação ao papel da música e ao indivíduo afroamericano.
Do novo trabalho — Black Radio III —, vieram as fragrâncias emanadas pelas canções “Black Superhero” ou “Shine”; que se complementaram a “Afro Blue”, do original Black Radio, em que a voz original é de Erykah Badu, e “Calls”, com Jill Scott (do Black Radio II), entre outras canções que remontam aos primórdios de Glasper. Foram as teclas que fizeram as delícias e que serviram como cabeça-de-cartaz para a programação mensal da Casa da Música, numa aposta totalmente ganha. São as mesmas teclas que transportam a essência de um (conjunto de) artista(s) que oscila profundamente entre o jazz, o R&B e o hip-hop e que, como tal, acabam por fazer esvaecer as suas fronteiras. Foi essa comunhão que teve lugar no recinto da Casa da Música, que justificou a ovação e todo o carinho demonstrado à banda, que culminou em prolongadas salvas de palmas no fim de cada canção. Que venham mais destas emissões da Black Radio, onde a música, envolta no jazz, se torna cada vez mais una, sentida e elevada.