Porquê José Mário Branco por 6 violas d’arco?
Esta é a primeira de uma série de crónicas sobre a música de José Mário Branco e o disco de homenagem à sua obra, “Águas paradas não movem moinhos”, composto para 6 Violas (sexteto de violas d’arco), que se apresentará no CCB no próximo dia 4 de Novembro.
As propostas regidas pela apropriação de particularidades musicais provenientes de tradições ou marcos estilísticos inconfundíveis na sua identificação auditiva são de uma grande exigência. Disse Fernando Lopes-Graça sobre a tarefa de transportar cânones musicais representativos de uma cultura para outros contextos: “que se tenha como primeiro objectivo servir a canção, apresentando-a numa como que moldura apropriada, que lhe amplie e reforce a sua fisionomia autêntica (…) Mas há também que não cair no extremo oposto, qual é de considerar que, pelo facto da canção regional ser, por definição (…) um produto “ingénuo” da inspiração popular, nós devemos tão-só recorrer, no seu tratamento “artístico”, a processos simples, que facilmente caem no simplismo e que, em vez de a transfigurarem, muito pelo contrário com frequência lhe fazem perder a sua seiva e a sua força originais.”1
Portanto, para a concepção deste tributo inesperado (devido à sua formação instrumental), era imperativo que os arranjos respeitassem a natureza e o trajeto emocional que cada canção proporciona ao espectador. Era fundamental esmiuçar os detalhes, desvendar os segredos musicais e as opções do autor, apreender as singularidades da letra e a forma como o autor desenvolveu a relação melodia/letra para motivar múltiplas sensações nos ouvintes da canção.
A partir desta análise, foi alcançado um conjunto de elementos concretos (ritmos, frases, motivos, dinâmicas etc.) que me forneceram a paleta de sons com que me diverti posteriormente, criando variações, insistências, imitações, e por aí fora. Assim se abriram inúmeras portas e assim começaram as primeiras decisões, sempre com o propósito vital de reforçar a autenticidade e a força das músicas de José Mário Branco.
No trajeto consistentemente evolutivo da discografia do cantautor de Abril, denota-se um desassossego cada vez mais abrangente, ligado a dúvidas profundas, imortais às circunstâncias que delimitam certos períodos da história. E esta inquietação persistente é percetível na sua música. A revolução, a intervenção de José Mário Branco foi feita através da crescente qualidade das suas opções musicais, dos seus conceitos e conhecimento artístico. Além do que absorvi das suas entrevistas, também conversei com alguns músicos que trabalharam com ele recentemente. Por exemplo, o fadista Marco Oliveira, cujo excelente disco “Ruas e Memórias” foi o último a ser produzido por José Mário Branco. Estes depoimentos confirmaram um pensamento artístico sofisticado e rigoroso, entregue ao desejo constante de fazer a melhor música possível.
Esta atitude, este modo de ser músico, não foi a única razão que me estimulou a concretizar este álbum de homenagem. Porém, deu-me motivos para compreender que a reunião de um sexteto de violas, que a composição de arranjos que, depois, se transformaram em vida própria, usufruindo da categoria musical das melodias e letras destas canções (só poderia ser assim para respeitar o incrível legado artístico e pessoal que José Mário Branco nos ofereceu), era um destino importante para mim ou para qualquer outro músico que decidisse abraçar este desafio.
Continuaremos a explorar este trilho de descoberta e arrojo na próxima crónica.
Um vosso músico,
Ruas e Memórias de Marco Oliveira:
1 LOPES-GRAÇA, Fernando, A música portuguesa e os seus problemas (III), acerca da harmonização coral dos cantos tradicionais portugueses, Edições Cosmos, Parede 1973, pág. 85 e 86.