Os melhores amigos
Para Michel de Montaigne (1533–1592), que escreveu um dos mais bonitos ensaios sobre a amizade, não há trabalho, troféu ou paixão que se intrometa entre dois verdadeiros amigos. Aquilo que os une, mais forte do que um mero sentimento, advém de um inexplicável estado de felicidade espiritual que transcende idades, caras, nomes ou nacionalidades. No tipo de amizade de que fala o filósofo francês, as almas dos amigos fundem-se, abraçam-se uma à outra como se fossem uma só, e não há ego, paixão momentânea ou interesse pessoal que interrompa essa união. Quando alguém lhes pergunta em que consiste aquilo que os liga, os amigos descritos por Montaigne não sabem como responder, visto parecer-lhes que sempre se adoraram, que antes de terem nome já se conheciam.
Idealmente, é este tipo de amizade que procuramos. Uma amizade eterna, imemorial, que resista a zangas e humores, mais etérea do que o amor que une duas pessoas num casamento, mais pura do que o interesse que nos obriga a concorrer a postos de trabalho. Quando nos despedimos de determinado amigo, pressentindo que talvez não o vejamos nos próximos meses e anos, convencemo-nos de que aquele amigo sempre ali estará, resistindo como uma rocha às estações. Pensamos nesse amigo do qual nos apartámos com a ternura que nem por familiares cultivámos. No entanto, ainda que os anos passem sem diluírem totalmente esse carinho, o amigo nem sempre responde às mensagens, os silêncios ampliam-se, há um aniversário em que não lhe telefonamos a dar os parabéns, surge uma namorada, uma esposa pelo meio que nem sequer nos foi apresentada. Um dia, concluímos que o amigo longínquo ficou noutra era e que aquilo que dele guardamos é como o retrato a preto e branco de um familiar falecido. O rosto que dele lembramos, ainda com acne e barba rala, não corresponde ao do homem de cabelo grisalho que se apresenta como exemplar gerente de vendas nas redes sociais.
“Queres almoçar comigo na sexta-feira?”, pergunta-nos o amigo distante por email, após uma separação de uma década. A primeira reação é de euforia, e sem hesitações respondemos “sim, mal posso esperar”. Afinal, pensamos, podem passar cem, mil anos, que continuaremos amigos, presos por um vínculo invisível que atravessará séculos. No momento do reencontro, as fábulas e ilusões acerca da amizade perfeita esbarram nas mudanças físicas e intelectuais impostas por experiências ocorridas durante o período que marcou a nossa separação. O amigo distante, que agora nos abraça e quase derrama uma lágrima, não parece falar connosco, mas com alguém do passado que se pavoneia de calças largas, frequenta o liceu ou a escola secundária e escrevinha nomes de vocalistas de bandas grunge no caderno. Sentados à mesa, acompanhados pelas esposas, bebemos o mesmo vinho que bebíamos nos tempos de estudante, retomamos temas praticamente olvidados, falamos de espaços comerciais que fecharam, esplanadas onde soprávamos fumo de cigarro e empinávamos sucessivas chávenas de café. Vêm à baila nomes de antigas namoradinhas de escola cuja cara esquecemos. “Lembras-te desta música?”, interroga o amigo, com aquele ar cúmplice de quem sabe um segredo impartilhável, mas nós não só não nos lembramos dessa música como a achamos relativamente enfastiante, e o mesmo fastio nos enche de bocejos ao escutarmos as quatro ou cinco músicas que se seguem. Aí surge uma frase: “Esta amizade não sobreviveu.”
A amizade que procuro é aquela sobre a qual Montaigne escreveu. Também gostaria de sentir que a minha alma se prolonga na existência de um amigo, e que a dele se prolonga na minha, e que no fundo estas almas formam uma harmonia de amor, perdão e empatia. Porém, ao escrever que procuro essa amizade, assumo que não a tenho tido, que nunca a tive, que as pessoas com quem me tenho cruzado acabaram por desaparecer e seguir outros rumos. Não sou a pessoa que era quando sentia que aquele meu amigo era a única pessoa que me fazia falta na vida. Já não escuto aquelas canções e não sei se o melhor que me poderia acontecer era estar com o meu amigo novamente. E o problema talvez seja meu: um problema de cobardia, de desaparecer para não partilhar a alma, para não consentir que a minha alma se funda na alma de alguém a que chamamos de melhor amigo.