Melodias fascinantes
Este texto integra uma série de crónicas sobre a música de José Mário Branco e o disco de homenagem à sua obra, “Águas paradas não movem moinhos”, composto para 6 Violas (sexteto de violas d’arco), que se apresentará no Centro Cultural de Belém no próximo dia 4 de Novembro, às 21h.
Existiram três critérios para a selecção das 10 canções provenientes do incrível espólio musical de José Mário Branco, patentes no disco “Águas paradas não movem moinhos”. Alguns temas foram escolhidos porque são uma referência na história da música portuguesa (como “Inquietação” ou “Eu vim de longe, eu vou pr’a longe”); outros foram eleitos devido às suas melodias apetitosas, sementes de criatividade, ricas em detalhes atraentes para a composição de novas versões (como “Quando eu for Grande” ou “Os meninos de amanhã”); outros foram integrados nesta fina lista de músicas porque, por este ou outro motivo, têm um significado pessoal e íntimo para mim (como “Eu vi este povo a lutar” ou a repetida “Eu vim de longe, eu vou pr’a longe”).
Ouçamos duas melodias das aqui mencionadas. Tratam-se de melodias muito belas, fascinantes pela sua, aparentemente natural, subjectividade.
“Quando eu for Grande” do disco “Correspondências” de José Mário Branco:
Há inúmeras formas de provocar sensações na música. De conduzir dinâmicas usando outros recursos, além dos conceituados crescendos e diminuendos de volume de som. O compositor consegue suscitar vários tipos de intensidade 1) através da orquestração e modificação de texturas (a utilização de mais ou menos instrumentos para uma certa passagem musical; a combinação entre sons diferentes para criar atmosferas ou destaques auditivos); 2) através da diversidade rítmica ou a falta desta; 3) através do silêncio (que pode provocar tensão ou relaxe, consoante os contextos musicais); e 4) através da organização melódica, ou seja, da forma como certos intervalos e ritmos interagem.
No caso de “Quando eu for Grande” o espectador fica imediatamente desperto com a primeira frase da melodia. Esta arranca com uma oitava perfeita. Um intervalo grande, espaçoso, mas consonante, reconhecível. Esta agradável abertura é continuada com duas segundas menores discretas, facilmente vistas como um ornamento, e uma quarta perfeita. O pequeno segmento ascendente/descendente das segundas menores é o suficiente para perturbar o que poderia ser uma melodia puramente feliz e vitoriosa: a sonoridade redonda da oitava e quarta perfeitas (o nome denuncia a sua consonância para os nossos ouvidos) não nos remete para a dúvida. Porém, a presença de um simples movimento com a segunda menor, instiga uma positiva angústia que nos cativa, que nos incentiva a escutar o resto da melodia.
O arranjo para o sexteto de violas de “Quando eu for Grande” foi construído a partir da análise das características intervalares e rítmicas que desenham a sua melodia. Foi no esmiuçar da beleza que encontrei uma paleta de motivos musicais que explorei e modifiquei, compondo depois uma peça autónoma, inspirada no tema originalmente cantado por José Mário Branco.
Podem ouvir o meu arranjo de “Quando eu for Grande” aqui:
Todavia, a minha postura foi outra quando apreciei a melodia de “Os meninos de amanhã” do disco “A Mãe”:
Esta melodia melancólica e ternurenta, agarra-nos pelo colarinho logo na primeira frase, tal como acontece em “Quando eu for Grande” (a obra de José Mário Branco não é incrível por acaso…). Aqui, a sequência intervalar sobe através de um acorde menor na sua 1ª inversão, e desce até à nota fundamental do mesmo acorde. Contudo, de seguida, esta sobe novamente uma sexta maior, terminando com uma curta pausa. Ou seja, o espectador é inserido num ambiente saudoso através da aparição clara do acorde menor (mas invertido). No entanto, pouco depois este é surpreendido com uma ligeira mudança de paradigma. O intervalo de sexta maior exponencia a atenção do ouvinte enquanto o ilude para uma resolução. Esta curta perturbação é também acompanhada por uma modificação harmónica.
A explicação parece mais complexa do que aquilo que efectivamente ouvimos. É normal. Consoante nos envolvemos mais com as micro singularidades de uma melodia, também desenvolvemos uma maior velocidade de percepção destas mesmas qualidades. Eventualmente, para a maioria de nós, o entendimento e compreensão destes pormenores é automático, transformando-se num gesto quase intuitivo.
“Os meninos de amanhã/ vão acordar num mundo novo/ com a estrela da manhã/ a iluminar o beco do povo/ (…)/ Mas o amor em que eu estou a pensar/ anda remando/ contra a maré, a desinquietar”
Encantado pelo carinho transmitido na melodia de “Os meninos de amanhã”, assim como pela esperança e pelo optimismo lutador presente na letra, defini um conceito para o meu arranjo desta música: um menino de amanhã canta a canção singela. Entretanto o fascismo, a opressão, a mediocridade, a ignorância, a violência, o racismo, a xenofobia, a vilania, invadem o espaço auditivo com um bloco sonoro dissonante, arrepiante, triste, numa tentativa de calar, silenciar a canção. Todavia, a melodia é tão bonita, tão bela, que consegue sempre superar o bloco de som. Ao ponto deste bloco desistir e cair no esquecimento. E a canção continua, continua a remar “contra a maré, a desinquietar”.
Podem ouvir o meu arranjo de “Os meninos de amanhã” aqui: