Intervenção
Este texto integra uma série de crónicas sobre a música de José Mário Branco e o disco de homenagem à sua obra, “Águas paradas não movem moinhos”, composto para 6 Violas (sexteto de violas d’arco), que se apresentará no Centro Cultural de Belém no próximo dia 4 de Novembro, às 21h.
Muitas vezes me pergunto o que pode ser a música de intervenção nos dias de hoje. Tendo em conta uma parte importante da nossa tradição musical e história, da qual constam os legados artísticos de músicos como José Afonso, José Mário Branco, Fausto Bordalo Dias, Sérgio Godinho, Janita e Vitorino Salomé, Adriano Correia de Oliveira, entre outros, a reposta provável passaria pela canção. A canção permite-nos ouvir uma melodia eventualmente cativante, associada a um poema denunciador da conjuntura injusta que pretendemos combater.
Porém, será o único procedimento, o único formato musical possível? Será a canção a mais profunda plataforma para a construção de um espírito artístico que se deseja desassossegado, vivo e revolucionário? (revolucionário não na perspectiva da invenção de vocabulário, mas no ponto de vista de uma atitude contestatária).
Evidentemente que não.
José Mário Branco ensinou-me, sobretudo através dos seus discos “Ser Solidário” e “Resistir é vencer”, que a intervenção, a ânsia revolucionária, só se mantém presente pela via da transcendência. Eu explico. Ao analisarmos a curta discografia de José Mário Branco, compreendemos a sua evolução. No meu entender, o clímax do seu desenvolvimento musical acontece no famoso tema “A Noite”. Sendo que, ao avaliar outros trabalhos, notamos um positivo crescimento conceptual e técnico. No fundo, José Mário Branco permaneceu fiel ao seu tridente de expectativas, com o qual concordo: para cultivar uma obra de arte fantástica, é necessário garantir uma combinação entre a “estética, a técnica e a ética”.
“A Noite” de José Mário Branco:
Todavia, a questão mantém-se. Afinal de contas, uma canção pode aportar todas estas vontades aqui expressas. Para tal, o compositor tem que inventar algo genuíno, que, apesar de influenciado por canções referenciais (que este aprecia), não seja uma mera imitação das fórmulas já aplicadas nessas mesmas canções referenciais. Por exemplo, muitas canções na actualidade insistem no velho modelo: breve introdução instrumental, verso 1, verso 2, refrão. Verso 1.1. (igual ao 1 mas com letra diferente), verso 2.1., refrão, refrão, curto interlúdio instrumental, refrão, refrão, refrão modulado, fim. E tudo isto suportado pela monótona e antiga progressão harmónica do Canon de Pachelbel.
Não acham isto aborrecido?
Este trio de princípios (estética + técnica + ética) é um bom ponto de partida para a criação, porque abre imensos horizontes, desperta inúmeras motivações revolucionárias.
Qualquer estilo ou veículo expressivo consegue se inserir dentro destes três parâmetros. Só precisa de estar comprometido com os mesmos. É indiferente se o protagonista musical é um intérprete, um DJ, um improvisador ou um tocador de cavaquinho. O essencial é o caminho, é a permanente busca por algo superior, por algo diferente, é aquele sentimento de que “Há sempre qualquer coisa que eu tenho que fazer/ Qualquer coisa que eu devia resolver/ Porquê, não sei/ Mas sei/ Que essa coisa é que é linda.”
Na próxima reflexão vamos descobrir porque é que “Inquietação” é uma canção emblemática e qual foi a abordagem aplicada no meu arranjo para o sexteto de violas d’arco.
O tema “Nem Deus nem Senhor”, do disco “Resistir é Vencer” usa a mesma introdução ousada de “A Noite”. Podem verificar: