Parar o óleo sobre tela
Na semana passada, um duo de ativistas atirou uma lata de sopa de tomate contra um quadro de Van Gogh, na National Gallery, em Londres. Quando vi as imagens o meu primeiro pensamento dizia que aquilo só podia ser um reflexo das miúdas ao provarem aquela sopa manhosa. Parece que, mais uma vez, não podia estar mais errado. Tratou-se de um protesto mediático do movimento Just Stop Oil que, segundo as participantes, visava alertar para a urgência da proteção ao planeta.
“O que vale mais, a arte ou a vida? Estão mais preocupados com a proteção de uma obra do que com a do planeta e das pessoas?” — perguntavam as manifestantes. “Milhões de famílias com fome e frio não podem pagar petróleo, não conseguem sequer aquecer uma lata de sopa” — afirmaram depois.
Para ser sincero, não me apetece opinar sobre meios e fins, modus operandi e alvos, até porque o quadro, protegido por um vidro, não foi prejudicado. Dotado de uma inata preocupação constante com as grandes questões, o que me interessou neste incidente foi a diversidade de indignações que vi refletida nas mais diversas plataformas digitais e analógicas, desde o Twitter ao balcão da tasca.
A saber:
Pessoas em geral indignaram-se com a falta de segurança do museu.
Seguranças do museu ficaram fulos com a passividade dos seguranças da entrada.
Franceses compararam a National Gallery com o Louvre, esclarecendo que, se pretendiam um evento com impacto mundial, não podia ser noutro museu que não no mais visitado do mundo.
Americanos copiaram a queixa dos franceses, referindo que o MOMA confirmar-se-ia melhor opção, até porque as latas seriam de imediato expostas junto à exibição de Andy Warhol.
Fãs de Van Gogh discutiram que “Girassóis” não é, nem de perto, nem de longe, a melhor obra do célebre pintor neerlandês.
Linguistas mais reacionários suspiraram porque já ninguém diz holandês.
Reacionários menos linguistas classificaram o penteado de uma das ativistas como sendo de um cor-de-rosa “feioso”.
A cabeleireira das ativistas chamou cinzentos aos detratores do cor-de-rosa.
Especialistas em pintura duvidaram se Leonardo da Vinci não representaria um alvo mais emblemático.
Três ou quatro amantes de arte moderna acharam a instalação demasiado curta.
Jovens wokes reclamaram que, se era para protestar, deviam atacar um Picasso fazendo um dois em um contra a poluição e a misoginia.
A minha mãe ficou possessa por utilizarem uma sopa enlatada: “esta juventude de hoje em dia nem uma sopa caseira sabe cozinhar”.
Produtores de tomate de Almeirim lamentaram que a sopa não incorporasse matérias primas portuguesas.
Conterrâneos dos agricultores supracitados escarneceram da ementa escolhida, sugerindo que uma sopa da pedra teria outro valor simbólico e também nutricional.
Altos dignitários da Confraria da Sopa dos Açores protestaram também, embora a sua mensagem não tenha sido bem percebida.
Copyrighters da empresa alimentícia americana que produziu a lata utilizada demitiram-se por não verem acolhida a sua sugestão de aproveitamento daquela iniciativa para nova campanha publicitária usando o vídeo do manifesto e o slogan: “Sopa de Tomate em Lata atirada a Van Gogh — é de trás de orelha!”.
Utilizadores compulsivos do termo “cringe” e filhos de pais que fazem “Dad Jokes” relataram sofrer de “vergonha alheia” pela piada inventada pelos criativos mencionados acima e alguns deles, poucos, também por este texto.
Crianças subnutridas da África subsariana choraram ao ver aquele desperdício de arte comida, devido a uma incomensurável dor de alma fome.
Adeptos de Teorias da Conspiração sussurraram que as ativistas tinham escrito, numa tinta apenas decifrável com luz infravermelha, as palavras “ON CANVAS” a seguir às palavras impressas nas suas t-shirts “JUST STOP OIL”.
Ecologistas de todo o mundo odiaram a atenção dada às piadas feitas sobre o acto, em contraponto ao pouco que se falou do problema real da crise climática.
Cínicos com preocupações ambientais questionaram se as moças reciclaram as latas depois de utilizadas.
Sarcásticos apoiantes do Aquecimento Global lastimaram o desperdício, evocando que a sopa estaria provavelmente morninha e pronta a comer.
Pessoal da limpeza do museu resmungou que quem se lixa é o mexilhão.
Mexilhão respondeu que já eram horas de se lembrarem de outro bode expiatório.
Bode expiatório sorriu resignado, encolheu os ombros e deu uma marrada imaginária no ar.
Eu, não pondo de parte que as miúdas podiam ser, simplesmente, desastradas (via-me a fazer aquilo se algum dia tentasse abrir uma lata de atum numa qualquer exposição), ganhei uma ideia para justificar um possível percalço provocado por estas mãozinhas: “Diz, xuxu? O quê, esta nódoa de vinho gigante na toalha bordada pela tua mãezinha, autêntica obra de arte dos atoalhados? É um manifesto a favor da preservação do planeta!”.
Três leitores desta crónica, não mais, deram o seu tempo como perdido.