Moçambique. Não-lugar como casa
João Tamura nasceu em Lisboa, nos anos 90. É músico, poeta e fotógrafo. Partiu, em setembro de 2022, numa viagem sem data de regresso ou destino definido. “Não-lugar como casa” em referência ao conceito de “não-lugar”, criado pelo antropólogo Marc Augé — é a série de crónicas que documentam essa viagem, numa simbiose entre as suas linguagens prediletas — a prosa e a fotografia analógica.
A nossa casa não tem estores, acordamos com o nascer do sol. A luz entra pelas janelas e invade a casa. Repousa no soalho de madeira antiga, nas paredes brancas, nos azulejos da cozinha.
A nossa casa não tem estores e acordamos com o soar das buzinas, na Julyus Nyerere; com vozes em ronga, em português, em changana (1); com o preço da fruta e da castanha de cajú; acordamos com os chapas (2) em direção ao Museu ou ao Anjo Voador; com os txopelas (3) — azuis, amarelos, vermelhos, verdes — e com os My Love (4), nos quais infinitas pessoas, sentadas ou de pé, viajam como podem — da maneira menos desconfortável que encontram — em direção ao trabalho, no centro da cidade.
A nossa casa não tem estores e, aqui, o tempo corre de forma distinta. As nossas pressas de Lisboa não têm lugar: os minutos estendem-se, pesados — demoram. Olhamos o relógio e dizemos “ainda é tão cedo” — deitamo-nos não muito depois do sol se pôr, acordamos pouco depois deste nascer. Decidimos, uma madrugada, apanhar o barco para Inhaca. Este parte do Porto de Pesca, na Baixa da cidade. Às 8h, entre violentas ondas, já rasgamos o Índico, e o cinzento do céu indica-nos que a manhã escolhida para a travessia não foi a mais acertada. A água invade o deque, ensopa-nos as camisolas, as sapatilhas. Somos como o pêndulo de um relógio, à mercê das vontades do oceano. Chegamos à ilha e sinto o sabor a sal nos lábios, e a sua incómoda textura nos cabelos, na face, nas mãos. Repousamos os corpos, exaustos da travessia, sobre a areia da praia, enquanto as nossas roupas secam, sob tímidos raios de sol.
Há muito que nos debatíamos com esta ideia de partir. Adiámo-la até não conseguirmos mais, talvez na esperança de que algo, mais tarde ou mais cedo, nos prendesse a Lisboa — um filho, a efetivação numa boa empresa, um aumento salarial. Mas nada disso aconteceu e acabámos por partir. Os meus pais ficaram preocupados quando lhes confessei que havia comprado o bilhete de ida e que não sabia quando, e se, retornaria — a família da Sara, igual. Entendo as preocupações que os assolam: as preocupações de quem trabalhou uma vida inteira para que nunca nos faltasse comida na mesa, ou livros para lermos; as preocupações de quem viveu numa eterna incerteza financeira e, mesmo assim, conseguiu construir uma vida, uma casa. Prometo que lhes ligarei todos os dias pelo WhatsApp, que lhes enviarei fotos, que lhes escreverei sempre que puder — e eles fingem que essas promessas, tão insuficientes, são capazes de acalmar, nem que seja por breves instantes, as ansiedades que lhes causamos.
A nossa casa não tem estores e partimos para o aeroporto ainda a sacudirmos os restos da noite de ontem. Bocejamos, enquanto a cidade acorda do outro lado da janela do táxi. Passamos os prédios altos, modernos: “São, na sua maioria, investimento turco. Multiplicaram-se nestes últimos anos.“, conta-me o taxista, o Sr. Fernando. “Parecem ser caros…” confesso. “E são. E estão quase todos vendidos…”. Passamos as moradias coloniais e, depois, os prédios de dois e três andares, adornados com roupas coloridas, estendidas ao sol da manhã; passamos os mini-mercados e as lojas, pintados com o vermelho da Mac-Mahon, com o azul da Maq-Shine, ou com o amarelo da Txillar (5); passamos a Mafalala, o Maxaquene, o Mavalane; passamos as casas de madeira e de zinco, as casas com telhados de chapa, as casas que alagam com a chuva, abanam com o vento, cacimbam com o frio; as casas em tudo distintas dos prédios altos e modernos, do centro da cidade; passamos casas e mais casas — até onde a vista alcança — e, depois, o aeroporto, o 818 da Ethiopian Airlines, o 27A e o 27B, e as 6636 milhas que nos separam de Bangkok.
(1) – O ronga e o changana são línguas-irmãs pertencentes ao grupo linguístico tsonga. São ambas, a par do português, faladas por grande parte da população de Maputo;
(2) – Carrinhas de transporte público coletivo;
(3) – Triciclo motorizado para transporte de passageiros. Têm capacidade para quatro pessoas – incluindo o motorista;
(4) – Veículos de caixa aberta dedicados ao transporte de passageiros. Os passageiros, seja pela falta de espaço, ou para se protegerem de eventuais quedas, são forçados a viajar agarrados uns aos outros – daí a designação “My Love”;
(5) – É comum, em Moçambique, marcas e empresas pintarem, com as suas cores, o exterior de casas e estabelecimentos que ombreiam as estradas. Os proprietários beneficiam de uma pintura gratuita e, as marcas, da publicidade que nestas exibem.