Concerto “30 anos de Moonspell”: uma viagem pela História do Metal em Portugal
Deixemo-nos cair na tentação de evidenciar a herética ironia que é celebrar o trigésimo aniversário da banda inicialmente apelidada de Morbid God, no Dia de Todos os Santos. No Coliseu de Lisboa — e na noite anterior, no Coliseu do Porto — os Moonspell apresentaram-se mais uma vez ao seu público, de forma enérgica e elegante, uma conjugação peculiar de adjetivos, que está apenas ao alcance de grupos com uma longa história de trilhos percorridos no mundo do showbiz.
Nessa noite, o ambiente celebratório foi palpável no Coliseu dos Recreios. Bastava contemplar os fãs, que deambulavam pela exposição de objetos icónicos da banda tirando fotos, cristalizando as suas próprias experiências com aqueles objetos e bebericando as suas cervejas, para compreender o significado da ocasião. Ao espreitar a sala de concertos, onde a banda Samael aquecia o público presente, entre os laivos de luz surgiam homens, mulheres e crianças alegremente expectantes e entusiasmadas.
Às 21:45, com uma pontualidade incomum deste tipo de eventos, a escuridão engoliu o público, e os lobos começaram a uivar na sombra. Subitamente, foram projetadas no palco inúmeras declarações gravadas de nomes sonantes do metal internacional, exultando o sucesso dos Moonspell e a sua contribuição para a definição e crescimento do estilo musical. Dani Filth, Mille Petrozza, Tiamat, Rotting Christ… até os Behemoth, lendas vivas do black metal, deixaram a sua mensagem, terminando com uma saudavelmente jocosa cover de “Alejandro” de Lady Gaga, de homenagem ao vocalista dos Moonspell. Para continuar a surpresa aos fãs, o vídeo prosseguiu com imagens e vídeos de antigos concertos da banda ao som de“Serpent Angel”, música que deu o mote para a entrada da banda em palco. Começara a celebração.
Como prometido desde a divulgação das datas dos concertos, as duas primeiras músicas apresentadas foram as “Tenebrarum Oratorium” I e II, em clara homenagem à história inicial da banda. Senti-me transportado para o início do meu relacionamento com os Moonspell, para um álbum que teve um profundo efeito em mim e me aguçou a curiosidade de explorar um percurso rico e longo, que merece ser contado e celebrado. Não terei sido o único a viajar no tempo, outros terão até viajado para um momento bem mais longínquo, aos idos anos de 92, ao início da caminhada do metal português, às trocas de cassetes, às fanzines, aos blusões de cabedal negros e às correntes, ao estigma de um Portugal tradicional onde o metal era olhado com desconfiança e os seus músicos e fãs ainda não tinham um lugar seguro no universo da música.
A realidade é que, nessa noite, a nossa viagem tinha acabado de começar. Regressemos, pois, à “estrada”. É um exercício complexo e frustrante tentar resumir um concerto repleto de momentos de destaque, mas é inegável o ambiente de festa proporcionado pela participação dos portugueses Cornalusa na interpretação de “Trebaruna”, e da sua irmã mais perversa “Ataegina”, através das quais os Moonspell homenagearam a influência das raízes lusas na sua sonoridade, fazendo todo um Coliseu saltar, dançar e gritar “Viva!”. Rui Sidónio também compareceu para a interpretação de “Em Nome Do Medo”, um momento eletrificante e de grande dinâmica entre este e os elementos da banda que, como já vem sendo hábito, arrebata e energiza o público.
Para terminar este resumo inglório mas que procura fazer justiça ao concerto, outro momento memorável foi a interpretação acústica de “Mute” com os Opus Diabolicum, que provocou uma enchente de lanternas de smartphones e criou uma maré de luz. Pelo meio, o vislumbre de uma chama solitária de um isqueiro a bambolear no meio de toda aquela tecnologia provoca um sorriso nostálgico, uma inusitada memória de tempos idos que completou adequadamente a mise-en-scène do abraço do presente ao passado.
Durante mais de duas horas, percorreram-se 30 anos de música, sentimento e emoção, através daquelas que foram as músicas selecionadas pelos fãs, através das redes sociais da banda. Uma forma democrática e inclusiva de celebração que terá, como em todas as coisas desta vida, agradado a uns e desagradado a outros. Foi, no entanto, assegurada a representação de todos os álbuns da banda durante o concerto. Puderam ouvir-se músicas que há muito não entravam no repertório ao vivo dos Moonspell, como “Abysmo” (Sin/Pecado), “Soulsick” (The Butterfly Effect), “Nocturna” (Darkness and Hope), “The Southern Deathstyle” (The Antidote) ou “White Skies” (Bonus Album: Omega White), mas poderá argumentar-se que outras igualmente merecedoras da honra de figurar na setlist não conseguiram a qualificação, como “The Hermit Saints” (Hermitage), “Likanthrope” (Alpha Noir), “Scorpion Flower” (Night Eternal), “2econd Skin” (Sin/Pecado) ou “Mephisto” (Irreligious). O dilema da escolha…
O regresso a casa permitiu refletir sobre o que se testemunhou. Esperava-se um grande concerto, algo diferente e marcante. Mas na verdade, como não poderia existir essa expectativa? Durante a pandemia, os Moonspell foram uma das bandas que conseguiu manter alguma atividade, fazendo uso do meio digital e de streaming para continuar a proporcionar atuações aos seus seguidores, e quebrando as barreiras logísticas impostas pela Covid-19 para realizar um surpreendente concerto a 80 metros de profundidade, nas grutas de Mira de Aire.
Porém, o mais fascinante é perceber como este momento validou a importância dos Moonspell para o panorama nacional do metal. A história trintenária dos Moonspell funde-se com a história do metal em Portugal, e a relevância da cena portuguesa no contexto internacional é consequência direta do caminho trilhado por estes pioneiros, miúdos imberbes dos anos 90 com um sonho de difícil aceitação por uma sociedade que não estava preparada para os receber. Uma história dura, um caminho de muitos obstáculos, inúmeras provações, inovação constante e por vezes prematura, mas de significado profundo.
Mas é das trevas que nasce o novo dia. Todas esta provações, ao longo de 30 anos, foram a origem de uma comunidade fiel, apaixonada e entusiástica, que acompanha os Moonspell nas suas desventuras e celebra as suas conquistas. Se é sabido que a “Alma Mater” teve a sua génese num sentimento de isolamento criativo, de “nós contra o mundo”, neste momento é um poema de exultação da originalidade, da coragem e do espírito luso, e um hino a uma extensa comunidade de fãs, seguidores e simpatizantes. Estamos presentes, e enquanto os Moonspell quiserem ser, aqui estaremos.
Texto de Eduardo de Melo Corvacho