Multiverso e um par de botas
A ONU estima que no próximo dia 15 de novembro a população mundial atinja os oito mil milhões de pessoas. Como diria a minha avó: “ai, credo, é gente a mais”. Mas não é esse o meu ponto. Em oito mil milhões de almas, qual é a probabilidade de, na passada segunda-feira numa consulta de medicina do trabalho, ter ao meu lado um outro Leonardo?
“Que maravilhosa coincidência! Muito prazer em conhecê-lo, caro homónimo! Espero que aqui esteja também para mera consulta de rotina. Está a ficar frescote, não acha? E o nosso Benfica? Aposto que é ‘de um clube lutadoooooor’…”.
Na verdade, não disse nada disto.
Não sei se por conta das quatro décadas no lombo, se por causa da pandemia, do cinismo contraído via twitter ou, porventura, apenas pela triste figura de levantar-me em falso porque afinal era o outro quem chamavam, o meu mais honesto instinto foi pensar: “estou mesmo a ver que estes gajos ainda me trocam as análises com este Leandro, ou lá como se chama”.
Olhei-o de relance, aparentava a minha idade. Acho que ele nem olhou para mim. E eventualmente fui chamado para os exames da praxe.
O primeiro foi a colheita de sangue. Não há vez em que me encontre numa situação destas que não recorde o clássico do youtube que é a tradução mais eloquente do meu processo de mentalização: “Pode vir, não dói nada, só um minuto…cacete de agulha!”. Pois bem, o karma de um gozão pode materializar-se na dificuldade da extração do espesso líquido vital.
— A agulha está lá, mas o sangue não quer vir — disse o jovem enfermeiro. Só à segunda espetadela ficou o serviço feito.
Seguiu-se o eletrocardiograma.
Segunda-feira, estou a pé desde as 6 da manhã, tenho um homem a esfregar gel no meu peito. Digamos que não era desta forma que tinha planeado a semana. E se eu gosto, pensei. Não senti especial prazer, o que por um lado é pena porque conseguiria irritar aqueles familiares mais homofóbicos que costumam ligar-me no Natal. Ainda assim, não foi pior do que estar a trabalhar.
Veio o teste de audição e a ansiedade aumentou.
— Carregue aqui sempre que ouvir um barulhinho.
Auscultadores a postos. E agora? Será que apitou? Que tipo de barulho fará? Pareceu-me ouvir um beep muito ao longe. Terá sido de algum telefone na sala de espera? Que se lixe, pressiono o botão. O enfermeiro desenhou uma bolinha. Ou seria um zero? A minha namorada diz-me que estou um pouco surdo, ao que eu sempre respondo: “o quê?”.
Passei.
Visão? Check! Pelo menos foi o que me pareceu ver assinalado.
Vamos então à consulta, noutra sala, um médico com idade para ser meu pai: assim está bem. Medição de altura e peso. Ó diabo.
— Descalço as botas, Doutor?
— Não é necessário. Eu dou um desconto.
Ora bem, medidos os quilogramas e os centímetros, tive que explicar-lhe que as botas que calçava tinham uma sola de tal forma rasa, que me parecia que o pé tocava primeiro o chão e só depois o rasto das botas lá chegava. A sola deste calçado é raso, tão raso, que parece quase uma palmilha. Uma película de borracha feita do mais fino látex extraído de seringueiras espalmadas do Chile, aquele país estreitinho.
Mas o problema destas botas nem é esse. É serem incrivelmente pesadas. De tal forma que, na loja onde as comprei, vieram entregar-mas com um empilhador para não prejudicar as costas da pobre vendedora. São tão pesadonas que há, inclusive, quem não tenha pudor em usá-las para fazer aquele tipo de coisas em que é preciso bastante peso. Isto é chumbo, sotor! E a sola, achatada como uma folhinha ténue, state-of-the-art no mundo das solas-anãs.
Apesar dos argumentos, o “Doutor” só descontou 1 quilo pelas botas. E na Altura não se coibiu de roubar-me 2 centímetros.
Análise do eletrocardiograma:
— Aparenta estar tudo OK. Espere aí, o V5 não tem leitura. Pode ter sido algum problema com o elétrodo. Vejo que o V4 e o V6 estão perfeitamente bem, deve de facto ter falhado a leitura.
— Sim, Doutor, confirmo que um dos sensores despipou durante o exame.
— Pois. É que, segundo a imagem, o senhor aqui estava morto — disse o médico.
Bem sei que o homem estava a brincar, mas tornou-se inevitável pensar na minha finitude. Terá sido por isso que o sangue não saía? Poderei ter estado morto naquele momento? Cessado, por um microssegundo, a minha existência? Deixado de ser? Como o papagaio dos Monty Python, haver-me juntado ao coro invisível, tornado uma ex-pessoa?
E se aquele teste ao coração era do outro Leonardo? Aviso o médico? Alerto o homónimo? O tipo que nem sequer olhou para mim? Se calhar não merece morrer por causa disso.
(Conhecem aquela tendência atual, decorrente de estarmos tão habituados a diversos estímulos em simultâneo, quer seja pela internet ou redes sociais, e que faz com que os filmes de super-heróis tenham múltiplos vilões — já não pode ser só um — e até várias cópias do mesmo herói, de universos diferentes? Já ouviram falar na série alemã “Dark” ou daquele filme em que há três(!) Homens-Aranha? Agora o tema é “Multiverso”, um só é pouco. Sabem do que falo? Então atentem ao que vou fazer agora).
Às tantas dou por mim a questionar se aquele Leonardo era eu, mas de outro universo!
(Pumba! O leitor apanhado de surpresa, a crónica a atingir níveis estratosféricos de mindblowismo, tudo a ficar maluco com isto).
Um tipo idêntico a mim, mas de um mundo paralelo! E que estava ali para um normal check-up, tal como eu, agonizando sobre a semana de labuta que teria pela frente.
— No entanto, vejo que está aqui vivinho da Silva – o médico interrompeu-me os pensamentos.
— Parece que as notícias da minha morte foram manifestamente exageradas, como dizia o escritor — omito o nome do autor do Tom Sawyer de propósito. Testava a célebre frase do professor Abel Salazar que dizia que “o médico que só sabe de medicina nem de medicina sabe”. Não obtive reação, todavia é justo considerar que o senhor estava deserto para me despachar, o que consigo entender.
Desconheço se foi por ter percebido a provocação ou pelo facto de estar possivelmente a falar com um ex-falecido, se por ter medo de fantasmas ou por ter que atender outro Leonardo a seguir, ou mesmo por inveja do meu conhecimento sobre as botas, quem sabe se por todas estas razões, o certo é que o médico olhou para mim com um sorriso malicioso e, com a arrogância de quem acaba de ganhar o jogo do galo ao seu maior adversário, desferiu uma cruz num quadrado branco que se encontrava ao lado da expressão “Apto para trabalhar”. Ainda temi que acrescentasse “#chupa”.
De volta ao átrio, não encontrei a minha versão do outro universo. E se eu o tivesse conhecido? Haveria alguma alteração ao fluxo espácio-temporal ao nível da tangente do coiso multiversal?
Era demasiada reflexão para uma segunda-feira de manhã. Saí da clínica carregando uma questão meio existencialista: se eu tivesse morrido, teria sido mesmo no início da semana. Menos mau. E, ainda que num só universo, em oito mil milhões de gente, este belíssimo par de botas a alguém haveria de servir. “Ai, credo!”.