Balada dum Estranho (Obrigado, Jorge Palma)
Caro Jorge,
Quando a notícia chegou aos subúrbios da cidade anunciando uma Antologia em seis concertos, nos quais revisitavas todos os teus álbuns, não hesitei. Apesar do preço, da distância até Lisboa, das datas a meio da semana. Eu fazia anos em Setembro, era a melhor prenda de aniversário que podia oferecer a mim mesmo. Modéstia à parte, pensei: eu, que vivo buscando sem saber bem o quê, mereço. Eh pá, deixa-me abrir contigo: eu mereço ver seis concertos de um dos homens que mais admiro, não só como músico, mas como letrista. Porque és o cantautor que mais me fez companhia desde a adolescência. Desde o momento em que uma amiga me emprestou uma cassete do ‘Té Já, e daí cheguei ao Bairro do Amor e ao Palma’s Gang, álbuns que tantas vezes cantei num quarto minguante — e foi nesta viagem que eu percebi que não estou só.
Também pensei, Jorge, porque penso demasiado, que seria uma oportunidade a não perder. Os anos passam por nós, não estamos a ficar novos, e eu via-me arrependido no futuro se desperdiçasse esta chance — talvez padeça de um certo cepticismo optimístico.
Se eu fosse programador, compunha em teu louvor uma aplicação de inteligência artificial, que arquitectasse uma pirâmide de palavras usadas nas tuas composições. Aposto que, no topo deste prédio, encontraria a palavra “solidão”. É por isso que te considero o poeta dela por excelência. Alguém que, apesar de não me conhecer, foi sempre meu enorme companheiro, que esteve sempre por lá, junto à tempestade, onde os pés não têm chão e as mãos perdem a razão.
No primeiro concerto, no Baldaya, disseste “obrigado por me proporcionarem esta alegria”. Tu é que nos agradeceste. A nós, que fomos traídos, a nós que atraiçoámos, a nós que deixámos cair aquilo em que acreditámos, nós desesperados que andamos a monte, que não quisemos faltar ao teu encontro, é essa a nossa forma de te agradecer, Jorge. Tu, eternamente tu, sim, és alegria e muito mais.
Na segunda data, no Tivoli, alguém do público exclamou “o que seria de nós sem ti?”. A pergunta fez-me pensar. O teu lugar seria ocupado por outro, não vale a pena estar com merdas. Contudo, por exemplo, o Bob Dylan nunca cantou os meus fantasmas na língua que é também a minha pátria. E o Wild Side do Lou Reed pareceu-me sempre mais distante que O Lado Errado da Noite.
Um homem atrás de mim na plateia comentava com uma amiga: “cheguei a vê-lo bastante bêbado em palco, mas ele agora está bem”. Não o levei a mal por focar o acessório. Nós, homens, somos assim: temos dificuldade em revelar sentimentos. Ele pretendia dizer algo do género: “apesar de ter visto o Palma num estado lastimável nalguns concertos, nos anos 90, eu perdoo-lhe. Foi tanto aquilo que ele me deu, que ele me dá, que eu era capaz de vê-lo em palco de qualquer maneira”. Era decerto isto que ele queria contar à companheira, mas depois teria que explicar que tu, provavelmente, o ajudaste a tratar das suas nódoas negras sentimentais.
Faz-me um sinal qualquer se me vires falar de mais, eu às vezes embarco em conversas banais, Jorge, mas para mim foram também essas tuas fragilidades, tão mundanas e parecidas às minhas, que mais me encostaram a ti.
No terceiro espetáculo, quiçá pelo cansaço de tantos quilómetros de estrada, confesso ter pensado que um total de seis concertos seguidos talvez fosse demasiado (já devo ter-te visto mais de cinquenta vezes). Porém, foi nesse dia que presenciei um dos momentos mais comoventes: ver-te no palco com os teus dois filhos a cantar “mãe, eu também estive sozinho, não estive, mãe?”. Pareceu-me ver o Vicente em lágrimas. Não posso confirmar porque também tinha a vista turva. Porventura eu já estivesse sensível pela versão do Castor que tocaste à luz de um só candeeiro — imaginei-te com menos 40 anos, com um recém-nascido ao colo, a compor essa melodia ao mesmo tempo esperançosa e nostálgica.
Disseste que estavas nervoso, que para ti “entrar no palco era como enfrentar um batalhão de fuzilamento”, mas sabias que tinhas “um público fantástico”. Pois ficas a saber também que o teu público nunca está nervoso quando te ouve, a tua voz acalma os corpos agitados.
Nesse mesmo dia, quando regressei ao carro, ouvi na rádio que foste tema na Assembleia da República: vários partidos usaram frases tuas para se atacarem uns aos outros — em vez de ficarem unidos, dividiram-se em mil partidos, lá no fundo todos queriam ser ditadores. Podem falar, mas estão a perder tempo se pensam que um dia te hão de amarrar.
O quarto concerto foi num feriado, o boletim meteorológico anunciava calor, mas onde o ambiente aqueceu foi no Tivoli. Bom tempo para elogiar essa banda magnífica que te acompanha.
O quinto voltou a ser num dia de semana: não há passos divergentes para quem se quer encontrar. Nessa noite, uma miúda gritou: “és uma obra-prima à escala mundial!”. Essa miúda é uma fogueira.
A sexta etapa da Antologia foi a que eu mais esperava. Razão de Estado alguma me impediria de invadir este Capitólio. Afinal, nunca é tarde para se ter uma infância feliz. A audiência estava ao rubro por rever o Gang, ainda que incompleto: o público tem sempre razão, o Zé Pedro também costumava ter razão. E os ouvidos batem no riff que ele fazia, há algum tempo que eu já não o ouvia… E agora toca a arranjar o buraco, que temos no coração.
O melhor que posso dizer desta epopeia é que esteve à tua altura.
Se, no início do texto, sugeri um sentimento amargo de “despedida”, eu estava a falar por mim. Já estou na chamada meia-idade e nunca se sabe o dia de amanhã. Não penses que o disse por ti, que serás eterno. E se isto não te disser tudo, arranja-me um momento mudo, o menos possível breve.
Desculpa se quando te citei neste texto não usei aspas. Quando ouço os teus poemas, os meus olhos ignoram as letras e fixam as entrelinhas, e exclamo: mas, afinal, estas palavras são minhas.
Lamento também se me repeti, se rimei, se fui ridículo como todas as cartas de amor; se esbanjei em frases o que podia exprimir de uma forma mais simples, mas como escritor sou um desastre e como economista ainda mais decepcionante, se calhar são demasiadas palavras para dizer obrigado.
Seja como for, companheiro Jorge, só queria agradecer-te. Em nome de todos os que vivem escondidos a vida inteira, que ao domingo sabem de cor o que vão dizer na segunda-feira, por aqueles que têm duas almas em guerra e sabem que nenhuma vai ganhar. Por tudo e por todos. Enquanto houver estrada para andar, a gente vai continuar e eu sei que um dia acabamos por nos reencontrar, nalguma esquina sem luz onde se queimem ilusões, quem sabe se para os lados dos gigantes da Ilha da Páscoa, ou nos balões da Capadócia, na Terra dos Sonhos ou no Bairro do Amor. O mundo é nosso, Jorge, dispensamos passaporte, somos Anjos de Berlim, as nossas asas têm um fim, elas afugentam a morte.