‘Murder on the Orient Express’: quem matou o bigode de Hercule Poirot?
Como pegar num clássico da literatura policial dos anos 30, sem lhe tolher as especificidades e a intriga whodunnit, e ao mesmo tempo atribuir-lhe alguma frescura? Provavelmente, Kenneth Branagh terá pesado cada uma destas variáveis, e outras porventura, antes de avançar para a adaptação de um dos policiais mais célebres de Agatha Christie. Mesmo que muitos sejam tentados a contorcer o bigode recordando com nostalgia o Poirot de Peter Ustinov ou o mais célebre David Suchet, da série clássica, talvez o mais marcante de todos. Talvez por isso, Branagh tenha sido tentado a dar-lhes um bigode a todos, ensaiando aqui aquele que é, de longe, o mais farfalhudo de sempre.
Parece-nos até que que na mente da produção terá estado a ideia de relativizar a intriga original de uma trama lida por tantos milhões e contornar mesmo a adaptação de Sidney Lumet de 1974, com Albert Finney no papel de Hercule Poirot. Assim se daria espaço a uma opção narrativa destinada a refrescar o clássico e prepará-lo até para as novas gerações. Só assim se compreende a opção pelo guionista Michael Green, que este ano não teve mãos a medir com a narrativa de Logan, Alien: Covenante mais recentemente de Blade Runner 2049. Percebe-se a ideia de tirar algumas teias de aranha à figura de Agatha Christie, ainda que mantendo acesos alguns elementos originais próprios daquele período colonial. Sendo que a génese seria sempre a investigação em redor de um homicídio cometido a bordo do Expresso do Oriente, em que o detetive Hercule Poirot deslindaria o caso interrogando a dúzia de passageiros, todos eles com alibis inatacáveis, embora também todos eles suspeitos.
É claro que quando se tem de sair da sombra de um clássico como o de Sidney Lumet, ou mesmo da série da BBC que impôs definitivamente David Suchet como o eterno Poirot, as opções tornam-se mais limitadas. Terá sido essa a justificação da monumental zona pilosa de Branagh que motiva mesmo um especial adereço para dormir? Bem vistas as coisas, essa distração talvez ajude a amnésia, aliada até ao carregado sotaque franciú deste tão british ator. Sejamos sinceros, Branagh nunca teve receio de dar nas vistas. O problema aqui é que arrisca-se a ser – como o da publicidade – o foco de toda a tenção.
Já se adivinhava que as merecidas férias com que Hercule sonhava, após o prelúdio em Jerusalém, que nos serve de aperitivo para a sua dedução, apenas irão durar o tempo de conhecer os diversos companheiros desta viagem de comboio de Instanbul com destino a Londres. Desde logo, o insinuante Racthett, um negociante de arte, com ar de gangster, a que Johnny Depp acrescenta o devido carisma; ele que vem devidamente acompanhado, ainda que de forma relutante, pelo mordomo Masterman (Derek Jacobi) e pelo seu assistente particular Hector MacQueen (Josh Gad). Isto já depois de provar o sex appeal da oferecida viúva Mrs. Hubbard, à pesca de novo marido, numa nova intensa prestação de Michelle Pfeiffer, a confirmar a boa forma depois do controverso Mãe! Mas há mais, Daisy Ridley é uma nova piscadela de olho à nova geração, ela que regressa do papel da heroína Rey, em O Despertar da Força – aguardemos pelo seu regresso no Episódio VIII – Os Ultimos Jedi, em novembro próximo – para dar espessura ao papel da governanta Mary Debenham, que mantém uma estranha relação com o Dr. Arbuthnot, numa personagem que opera uma mudança racial aquela interpretada por Sean Connery em 1974, agora com a presença irrepreensível de Leslie Odom Jr. Pena é que algumas personagens tenham sido amputadas pelo guião. Como sucede com a Princesa russa Dragomiroff (Judi Dench) e a sua ama (Olivia Colman), com pouco ou quase nada para fazer a não se mostrar um ar de digno enfado. Embora o papel mais insonso esteja mesmo reservado para Penélope Cruz, na descartável religiosa introvertida Pilar Estravados.
Kenneth Brabagh, o hábil encenador, joga todas estas peças como se se tratasse de uma gloriosa peça de teatro, aqui com a réplica da escala do ecrã em 65mm. Já se sabe que nem é tanto o desenlace final que conta – apesar disso não nos atrevemos ao spoiler -, mas tanto por esse desejo de gestão da orquestra pelo homem do bigode. Sendo que é nele próprio que reside a maior parte dos excessos e do maneirismo. Ainda assim, chegados ao final, como que esse peso foi de certa forma sublimado por um espetáculo mainstream que acaba por não desejar mais do que pouco menos de duas horas de entretenimento regado com Cola e pipoca.
Artigo escrito por Paulo Portugal / Parceria Insider.pt