‘Eis o Admirável Mundo em Rede’: internet, anonimato, desumanização
Na Internet, ninguém sabe se tu és um cão. A frase vem associada a um cartoon da New Yorker (1993), referindo-se ao anonimato que marca as comunicações na Internet e é recuperado por Werner Herzog no seu documentário Eis o Admirável Mundo em Rede ou, no original, Lo and Behold, Reveries of the Connected World (2016). Contrastando com esta ideia, o informático americano Danny Hillis, um dos muitos entrevistados pelo realizador alemão, relembra os tempos em que havia apenas outros dois Dannys a utilizar a Internet e que ele os conhecia aos dois. A evolução até aos tempos correntes é tão impressionante como inesperada, mas a tarefa de catalogar todos os utilizadores da Internet tornou-se impossível. Esta evolução alterou irremediavelmente o modo como comunicamos, mas considerando factores como a desumanização das interações sociais associada, serão estas mutações sinónimo de progresso?
O físico americano Lawrence Krauss, entrevistado em Lo and Behold, afirma que a Internet é aquilo que ninguém conseguia prever. Os filmes de ficção científica retratavam carros voadores e naves espaciais a explorar o Universo, mas poucos conseguiram imaginar algo que se assemelhasse ao que hoje é a Internet e ao modo como as pessoas comunicam. A busca pelo progresso está hoje no seu pico e muitas são as situações ilustradas por Herzog no seu documentário que demonstram que o ser humano não pretende desistir do aperfeiçoamento do sintético. Torna-se muitas vezes mais fácil dar valor ao veículo da comunicação, seja um computador ou um smartphone, do que ao aspecto humano que se materializa no receptor da nossa mensagem. No momento em que escrevo este texto, num de muitos cafés em Lisboa, das onze pessoas presentes apenas duas estão a ter uma conversa sem ser por meio de qualquer dispositivo. As restantes nove estão fixadas em telemóveis, tablets ou computadores, grupo onde eu próprio me incluo.
Hoje contamos com Facebook, WhatsApp, Skype, Tinder, entre inúmeras outras aplicações e plataformas que permitem conectar instantaneamente com outras pessoas localmente ou em qualquer ponto do globo. No entanto, a desumanização é uma realidade e torna-se mais comum ver um perfil, um avatar ou um simples nome a representar aquilo que é uma pessoa, sendo muitas vezes essa toda a informação que temos acerca dela. Longe está o tempo em que apenas três Dannys navegavam na Internet e se conheciam entre si, quando existia um pequeno livro com poucos centímetros de volume com todos os utilizadores da Internet. Herzog aponta que a desumanização e o anonimato da comunicação validam o ódio e o abuso, indicando o exemplo de uma família americana que recebeu de anónimos fotos da filha decapitada, depois de esta ter morrido num despiste de carro. Se somarmos os vários custos – especialmente morais – e a utilidade das várias possibilidades que nascem da Internet não é tão óbvio que o resultado seja positivo.
Um dos principais conselhos que damos aos mais novos relativamente à Internet é para não acreditarem que toda a gente é quem diz ser. Não é um perigo exclusivo da era digital, mas este é um veículo que facilita a tarefa de quem pretende tirar proveito de um anonimato quase total. Os acessos à Internet são localizáveis, os utilizadores do computador a que acederam também, mas talvez pedir às crianças que localizem o IP das pessoas com quem falam online antes de confiarem seja um conselho demasiado complexo. Dificilmente do outro lado está um cão, como brinca em 1993 a New Yorker, mas facilmente está alguém que não é quem diz ser e esta não é uma situação que afecte apenas crianças. A instituição que nos pede dados bancários, que nos partilha a informação acerca do local de uma entrevista de emprego ou que nos indica onde determinado evento vai acontecer pode, com relativa facilidade, ter intenções diferentes das que parecem ser óbvias.
A web está bem viva e nunca como hoje a celebrámos tanto, seja através de grandes eventos como a Web Summit ou das vantagens que nos fazem acreditar que tem a mais recente app ou mais um produto inovador. Estamos a explorar a realidade virtual na expectativa de encontrar o que não é possível ver no mundo que nos rodeia e perdemo-nos no que nos surge do outro lado de um ecrã, seja qual for o seu tamanho. Esta é a opinião também de Herzog, que nos mostra o caso de jogadores de videojogos que procuram reabilitação, apresentando casos como o de um casal coreano que deixou morrer o filho bebé por esquecimento, enquanto evoluíam a sua personagem num jogo online. Todos os ganhos que temos deste avanço tecnológico contrastam com as perdas a nível de comunicação e de humanização. Até podia mesmo estar um cão do outro lado do avatar que nos surge num jogo online, na foto de uma rapariga sorridente numa rede social ou no detentor do canal de YouTube que adoramos seguir, mas a verdade é que isso deixou de interessar.
Nos capítulos Life Without the Net e The End of the Net, Hergoz procura perceber como será a vida na eventualidade da Internet deixar de existir. O maior problema é o carácter aditivo que está associado ao mesmo, podendo o ser humano não saber como voltar atrás, especialmente no caso de gerações que nasceram já num mundo em que a Internet é uma realidade. O que nos é pedido agora e cada vez mais é que nos adaptemos às novas formas de comunicar ao mesmo tempo que se procuram mecanismos para combater aspectos negativos como os que foram aqui listados. A Internet evoluiu, ultrapassando os limites controláveis que são apresentados por Danny Hillis na forma de uma pequena comunidade digital, sendo esta hoje a realidade de uma percentagem bastante significativa da população global. Podemos estar longe de um mundo onde duas pessoas nunca precisem de se cruzar, mas esse parece ser um dos objectivos últimos que a Internet pretende atingir. Não é um cenário tão difícil de imaginar no futuro que o mesmo café onde me encontro possa ser habitado exclusivamente por pessoas ligadas em rede, recebidas por sistemas computorizados inteligentes. Evolução? Sem dúvida, é fascinante o que conseguimos atingir nas ultimas décadas. Progresso? Dificilmente.