Agostinho da Silva e a cultura do povo
Aconselhado por um familiar, parti na descoberta pelo programa que em tempos deu na televisão portuguesa, o Conversas Vadias, que tinha Agostinho da Silva como protagonista, e onde os entrevistadores iam rodando, para que fosse possível que os diálogos partissem para direções diferentes.
Agostinho da Silva é daqueles génios que, infelizmente, não nos habituámos a ter em Portugal. Visionário, à frente de tudo aquilo que o comum mortal consegue imaginar. A forma como fala e explana as suas visões, que muitas vezes rasgam com o senso comum, leva-nos a refletir sobre aquilo que tomamos como garantido. Os portugueses não estão muito habituados a mentes assim.
Com vários entrevistadores, como o caso de Herman José, foi com Miguel Esteves Cardoso que fiquei mais preso ao programa. Ainda jovem, assumiu uma postura de confronto para com Agostinho da Silva, tentando rebater opiniões com leituras que tinha realizado de obras do próprio entrevistado. A certa altura, Miguel Esteves Cardoso tece um comentário acerca dos portugueses, que Agostinho da Silva não concorda. Miguel Esteves Cardoso volta a reforçar que é o que acha, e Agostinho da Silva diz-lhe, não sei precisar as palavras certas, mas que o entrevistador deveria sair de Lisboa, deixar de conversar apenas com os intelectuais da capital, e partir para o Portugal do interior, o Portugal profundo, onde há também cultura, talvez não aquela que Miguel Esteves Cardoso estivesse habituado, mas igualmente relevante, e então aí sim, saberia o que são, de facto, os portugueses.
Fruto do meu emprego, fui colocado numa cidade do interior de Portugal, aquele interior mais próximo de Espanha do que da capital portuguesa. Mas tão portuguesa como qualquer outra. Numa viagem que fiz, a uma aldeia do concelho, caminhava numa estrada sem trânsito, com um pequeno rio que, no verão, serve de praia fluvial. As pessoas que se iam cruzando, cumprimentavam-se e perguntavam como estava a família. Dizia-se que o café emblemático da terra tinha encerrado porque o senhor tinha falecido e ainda ninguém tinha assumido a sua gerência. Faz falta, o senhor era carismático e era o ponto de encontro da população.
A certa altura, uma senhora perto dos noventa anos desceu de uma casa lá de cima, porque era conhecida de uma das pessoas que me acompanhava. As rugas acompanhavam-na, mas as pernas caminhavam ainda com a força de quem aguenta o que der e vier. Começou a falar com uma das pessoas que eu acompanhava, e falava do passado. Dizia que antigamente as coisas eram mais rígidas, que era demasiado. As mulheres não tinham praticamente hipótese de seguir a vida escolar, e não se vivia tão à vontade. Agora a liberdade também é demasiada, faz-se tudo o que se quer e às vezes exagera-se. Ainda assim, vive-se melhor, ainda que as pessoas estejam a fugir da aldeia. Dentro de dez anos não há lá ninguém. É fruto da modernidade, dizia ela.
Nada do que esta senhora disse é descabido. A aldeia deverá ter cerca de cento e cinquenta habitantes, e a distância para Lisboa é grande. Vive sozinha e, segundo ela, já passou por uma vida inteira naquela zona. A forma como falava revelava sabedoria, conhecimento. Prestou vários conselhos aos mais jovens que por ali se encontravam.
Há poucos anos, quando houve cheias no Mondego, veio um ministro alertar que as pessoas deveriam deixar de viver naquelas zonas, abandonarem as suas habitações e irem para outro sítio qualquer. Nas cheias em Lisboa, não houve nenhum responsável político levantar esta hipótese.
Não quero fazer qualquer tipo de julgamentos sobre quem é mais ou menos importante, porque vendo bem, o final de todos nós será o mesmo. Contudo, seria importante viajar-se não só para o estrangeiro, que também é importante, mas também cá por dentro. As aldeias do interior não devem servir apenas para colocar em folhetos de sítios a visitar. Pode-se ir lá mesmo, e então sim, irão perceber que há cultura nestas regiões. Pode não ser a cultura da erudição, mas é também cultura. E é igualmente relevante.