A inteligência artificial e a arte: combater o medo com o medo
Ignorância. Foi desta forma que decidi estar perante o avanço da Inteligência Artificial (IA). A perplexidade, o receio e o susto que as imagens geradas por IA deixam nas pessoas e, principalmente, nos artistas são algo incomodativo e que nos tira o chão. Questionamo-nos sobre o futuro e sobre o nosso futuro. O que farei eu daqui a uns meses ou anos assim que a IA se implementar de forma definitiva no mundo criativo?
A IA é algo que já está presente nas nossas vidas há bastante tempo; desde a medicina ao jornalismo e mesmo economia, são várias as áreas onde a IA é usada com frequência e está cada vez mais implementada. Mas o meio artístico e criativo da área da imagem, achava-se intocável e longe desta realidade. Até que, em meados de 2022, começam a surguir diferentes IAs de geração automática de imagens, onde com uma pequeno texto ou algumas palavras-chave, chamadas “prompts”, o computador gera uma imagem seguindo essas sugestões. O resultado que nos é apresentado em poucos segundos é de tal forma impressionante, que são já várias as empresas que a utilizam para a criação de design gráfico ou ilustração, sem que para isso tenham de contratar qualquer profissional. Isto levanta muitas questões, e para quem é artista levanta ainda mais.
Perante este cenário, manter-me na ignorância pareceu-me a melhor decisão, afastando-me desta realidade o máximo possível, achando que, de alguma forma ela pudesse desaparecer. Mas como docente na área artística, o desconforto no ensino de novos jovens que irão em breve entrar no mercado de trabalho, fez-me mudar de ideias.
Por isso, no início de 2023, e depois de muito ter visto e lido sobre IA, decidi que estava na altura de combater este medo com o próprio medo.
Em apenas 24 horas, construí do zero, aquela que pode ser considerada a primeira curta-metragem cinematográfica feita 100% com recurso a IA.
O resultado final assusta. Assusta muito. Pensar que as imagens não foram captadas, desenhadas ou modeladas por ninguém. O texto não foi escrito nem falado por ninguém. A música não foi composta nem tocada por ninguém. Tudo foi gerado por computador com recurso apenas a “prompts” que introduzi nestas IAs.
No total foram necessárias utilizar sete IAs diferentes, todas disponíveis de forma gratuita e online, onde cada uma delas cumpriu quase na perfeição a sua função. O que, de certa forma, também, abre espaço à manipulação humana entre cada um dos processos. Mas já existem, à data de hoje, algumas IAs que juntam alguns destes processos e a tendência é que continue a acontecer, o que fará com que a interferência humana seja cada vez menor.
Mas para se perceber melhor do que estou a falar, vou desconstruir todo o processo para vos demonstrar o passo-a-passo.
Para gerar cada uma das imagens que vemos no filme foi utilizada a IA Dall-E. A imagem abaixo foi gerada com os “prompts”: “dense woodland landscape, english forest, irish forest, scottish forest, perspective, folklore, ultra photoreal, photographic, concept art, cinematic lighting, cinematic composition, rule of thirds, mysterious, cinematic lighting, ultra-detailed, ultrarealistic, photorealism”.
Foram apresentadas quatro opções pela IA, onde escolhi a que mais me agradou. Procedi desta forma para gerar cada uma das imagens, consoante as ideias me iam surgindo na cabeça, mas sempre muito condicionadas por aquilo que a IA me mostrava.
Depois, utilizando a IA 3D Photo Depth, foi gerado um mapa de profundidade para cada uma delas, bastando para isso fazer upload das imagens fornecidas pelo Dall-E.
Com a IA Depthy, combinando a imagem gerada pelo Dall-E e pelo 3D Photo Depth, foi gerado o pequeno movimento que vemos em cada imagem, onde é possível definir a velocidade do movimento e a orientação.
Para o texto que ouvimos, foi utilizada a famosa IA ChatGPT com o “prompt”: “narration for a short film about nature become the space where artists work, AI control the artistic world, what is the endind?”, e o texto foi obtido à primeira tentativa, sem serem necessários quaisquer ajustes.
Colocando o texto na IA FakeYou, é possível escolher uma voz das inúmeras opções disponíveis, eu optei pela voz do Morpheus do filme “Matrix”. O som vinha um pouco deteriorado, então foi necessário recorrer a outra IA, a Adobe Podcast, para limpar o som de forma automática. Entretanto, desde a criação deste filme, já foram lançadas novas IAs de geração de áudio muito mais precisas, e onde apenas com uma amostra de três segundos de áudio, a IA consegue gerar longas falas com a voz da amostragem.
A música foi gerada pela AI Soundraw, utilizando os seguintes “inputs”: “epic, fear, mysterious, sad, scary, suspense, orchestra, cinematic”. Foram geradas várias músicas e ao escolher uma, temos a possibilidade de modificar o tempo e que partes queremos que sejam “hight” e “low”.
Com isto, bastou juntar tudo num software de edição de vídeo, definindo que imagem queria em cada momento juntamente com a música e a voz, e com alguma técnica de compositing, tornaram-se as coisas mais interessantes utilizando partículas, rays ou colorgrading.
A ideia de como a AI pode vir a desvalorizar a arte e o criador deixam-me com muito medo do futuro. Mas é para aqui que caminhamos, e bem depressa, e não podemos ignorar.
Ainda que haja uma clara interferência humana neste processo, a tendência é que ela venha a ser cada vez menor, e aquilo que poderia demorar meses a criar com uma equipa de vários profissionais, passa a ser criado de um dia para o outro, sem qualquer custo.
A Inteligência Artificial está tão avançada, que mesmo que se repita o processo novamente com as mesmas palavras-chave, nunca se irá obter o mesmo resultado, logo estaremos sempre a “criar” algo completamente único. Assim, num estalar de dedos.
São já vários os movimentos de artistas que se opõem as estas IAs, principalmente, as de geração de imagem, mas não numa tentativa de as “calar”, mas sim num esforço de as regular, pois levantam várias questões de direitos de autor e ética. São já diversos os processos em tribunal contra as empresas que detêm estas IAs, por não ser clara a forma como as imagens são geradas, nem serem públicas as bases de dados de imagens que estas usam para “aprender” a gerar as imagens, havendo também casos de imagens geradas por IA que se assemelham bastante e são quase plágio de obras de artistas.
Grandes nomes da indústria da ilustração e da animação também já se demostraram descontentes com estas IAs, preocupados com a homogeneização da arte e perda de criatividade artística humana, como o caso de Andrew Stanton, argumentista e produtor da Pixar, ou Hayao Miyazaki, realizador e fundador do Studio Ghibli.
No final de tudo isto, e enquanto escrevo este texto, a tecnologia evolui. Tal como as suas possibilidades. Portanto, no lugar do medo, julgo que a solução passará mesmo pela regulação, para que os artistas possam coexistir com a IA e que a IA nunca tire o lugar dos artistas, sendo, apenas, uma ferramenta.