Entrevista. João Gonzalez: “Fazer um filme ajuda-me a perceber melhor a minha forma de lidar com determinado assunto”
Em “Ice Merchants” (2022), pai e filho, cujo ganha-pão é produzir e vender gelo, moram no cume de uma montanha gelada acompanhados pela saudade de um membro da família ausente, alguém materializado através de uma caneca amarela que serve, não bebida, mas companhia. Dia após dia, os protagonistas descem de paraquedas para vender o seu produto aos habitantes de uma localidade próxima.
A curta, da autoria de João Gonzalez, conquistou prémios como o Hugo de Ouro para melhor curta de animação, no Festival Internacional de Chicago e o Prémio de Melhor Curta-Metragem na Semana da Crítica do Festival de Cannes. Com mais de 9 prémios de qualificação para os Óscares (Vila do Conde, Guadalajara, Melbourne, Chicago, St. Louis, Alcine, BendFilm, Anim’est e Spark), “Ice Merchants” encontra-se, agora, na shortlist para a 95.ª edição das estatuetas douradas e nomeado para os Annie (os Óscares da animação).
A música e a paisagem sonora
Com a duração aproximada de 14 minutos, “Ice Merchants” não possui quaisquer diálogos, no entanto, fala-nos abertamente através da linguagem audiovisual. A trilha sonora e o design de som foram elementos indispensáveis para contar esta história e a criação dos mesmos começa logo durante a fase de pré-produção, “antes de fazer os testes visuais e de escrever a narrativa“, explica o realizador. Um processo que se prolonga durante toda a produção.
A música é uma constante na vida e nas obras de Gonzalez, “foi a primeira área artística com que eu tive contacto, desde os 4 anos”, explica, “O meu pai também é pianista, e, visto não ser muito bom a desenvolver diálogos ou a escrever, senti a necessidade de ter algo que me ajudasse a conduzir a narrativa. A música sempre foi esse veículo”. Dividida em três segmentos, a trilha sonora de “Ice Merchants” compõe um diálogo com o espectador através de diferentes dinâmicas de sonoridade.
O processo criativo interdisciplinar viabiliza uma relação de complementaridade única. Música, som e imagens são tratados como um só elemento em permanente comunhão e unem-se para edificar o enredo. “Utilizo a música como inspiração”, explica Gonzalez, “começo a compor a banda sonora, isso dá-me ideias para a narrativa que, por sua vez, inspira o desenho e vice-versa. É através desse Ping-pong que começo a construir a história”.
O desenho de som tem assinatura do sonoplasta britânico, Ed Trousseau, com quem Gonzalez partilha o mérito, “ele é absolutamente fantástico”, elogia, “percebe completamente o poder e a necessidade em criar imersão. Começamos o sound design ainda durante a produção do filme. Eu animo os primeiros minutos, envio-lhe e ele começa a construir o design sonoro”.
A trilha sonora e o desenho de som da curta compõem, ora num compasso tenso, ora numa harmonia emocional, um enredo profundo e ternurento. Nos filmes de João Gonzalez, o som é tão pertinente quanto as imagens. “Sinto que vou sempre estar ligado com a banda sonora dos meus filmes”, confessa o jovem realizador que nos diz ainda que “provavelmente, vou ser sempre o compositor, porque é algo que faz parte do meu processo. Não me consigo imaginar, neste momento, a fazer um filme em que não tivesse controlo da parte sonora do filme”.
O enredo: temas difíceis e realidades surreais
“Ice Merchants” é uma história sobre família, perda, saudade e repetição do quotidiano. Instalados num cenário surreal, no cume de uma montanha gelada, pai e filho, fazem da venda de gelo a sua rotina. Saltam de paraquedas até uma localidade próxima, vendem a água solidificada aos habitantes e regressam a casa através de uma motorizada integrada num guindaste. “Gosto de pegar em realidades completamente surrealistas e bizarras, que normalmente costumam ser inspiradas por visuais que me vieram inconscientemente, ao adormecer”, refere Gonzalez, “sei que essas realidades se relacionam comigo pelo sentimento que despertaram ao visualizar as imagens, então gosto de recorrer a elas como metáforas para falar sobre algo que me é próximo e que me toca”. Através da ficção e das imagens oníricas, o realizador procura enquadrar temas aos quais é mais sensível “através de uma barreira que não se associa diretamente a mim”, assume Gonzalez e que diz ainda que “ao estarem no filme, esses temas tornam-se em algo universal”.
“Fazer testes visuais enquanto componho a banda-sonora para entender qual o tom do filme é uma parte muito importante do meu processo de criação.”
João Gonzalez
Nos trabalhos de Gonzalez, o contexto que rodeia os protagonistas atua enquanto força do antagonismo. Na sua última curta, “Nestor” (2019), um homem com comportamento obsessivo-compulsivo vive num barco que não para de oscilar com as ondas do mar. Agora, em “Ice Merchants”, pai e filho vivem no cume de uma montanha gelada para produzir gelo. O conceito e o contexto atuam paralelamente. “Quanto mais desenho sobre uma possível realidade, mais ideias surgem sobre que narrativa poderia ocorrer naquele espaço. Utilizo a realidade onde os filmes decorrem como uma personagem”. Situar as personagens neste tipo de contexto permite, ainda, ao autor falar sobre determinados temas mais sensíveis ou pessoais e os seus protagonistas tornam-se “quase um pseudónimo artístico”.
O processo de construção narrativa de “Ice Merchants” foi bastante orgânico, tendo sempre a imagem como agente desencadeador central e a sonoridade como compasso do enredo. “Enquanto tenho ideias para a narrativa, tenho, em simultâneo, ideias para a estética, uma vai alimentando a outra. Inicialmente, já sabia vagamente o tema do filme”, explica Gonzalez, “sabia que ia ser um filme sobre a perda, mas a narrativa em si, forma como poderia ser estruturada e as suas pequenas nuances é algo que vou descobrindo à medida que penso sobre a narrativa, escrevo e desenho”.
A estética: “tudo parte de uma imagem”
Durante o processo criativo, não existe guião, tudo começa com a ilustração, através do storyboard, e acaba por desenvolver-se em paralelo com a música e o design de som. “Tudo parte de uma imagem”, começa Gonzalez, “no caso do ‘Ice Merchants’ era uma imagem de uma casinha presa a um precipício muito alto”. Do storyboard à animação existem algumas alterações, “está sempre em constante mudança. Vou aprendendo à medida que faço o filme”, explica o realizador.
A identidade autoral de João Gonzalez está tão definida quanto os seus contrastes e sombreados. A sua estética e o seu traço, irreverente e singular, é um casamento perfeito entre o Miyazaki e o Hergé. “Sempre gostei de perspetiva, sombras, algo que acentua o carácter dramático do filme, e de estudar paletas cromáticas reduzidas“, diz-nos.
“Fazer um filme ajuda-me a perceber melhor a minha forma de lidar com determinado assunto. No caso do “Ice Merchants”, o tema principal é a perda e o meu filme anterior, “Nestor”, era sobre um homem com perturbação obsessiva-compulsiva (POC), algo com que também me identifico. É engraçado, porque depois desse filme sinto que melhorei substancialmente a minha relação com a POC. É quase uma terapia para mim.”
João Gonzalez
Durante o processo de produção, a sua obra compõe-se através de uma jornada de autoconhecimento enquanto artista e a modéstia do autor acaba por constituir um dos seus traços mais característicos. “Ao longo da produção do filme, fui-me apercebendo que, estas características visuais que o filme tem, foram acontecendo por limitações técnicas que eu tinha. No meu percurso, estudei ciências no secundário e fiquei um bom tempo sem desenhar absolutamente nada. Pergunto-me, muitas vezes, como seria se tivesse ido para uma escola de artes durante esse período. Se calhar, poderia estar mais à frente. Nunca tive aulas de pintura e nunca tive muito interesse em realizar algo hiper-realista, isso acabou por traduzir-se esteticamente no que faço (…) Nunca fui muito bom a pintar, portanto foco-me em arranjar uma paleta cromática reduzida e a esperar que essa paleta cromática me ajude a guiar conceptualmente a narrativa. Arranjar uma razão para selecionar cada cor, não só porque me agrada ao nível estético. Faço sombras muito pretas e densas, acho que são visualmente interessantes. Parte da minha visão estética surgiu por reconhecer e aceitar as minhas limitações técnicas e arranjar soluções criativas para as contornar e, ao mesmo tempo, criar algo que me é mais próximo”.
Apesar de não recorrer a um argumento tradicional, Gonzalez descreve, através de bullet points nos seus diários gráficos, fragmentos de ação narrativa que podem vir a integrar o enredo. O trabalho de pré-produção é uma das prioridades do jovem realizador e a experimentação, a tentativa e o erro, uma constante no seu processo de animação. “Tenho imensos testes do mesmo plano, mas com cores e brushes diferentes”, indica.
As perspetivas exageradas e as dimensões desproporcionais são algumas das técnicas prediletas do autor. Em “Ice Merchants”, estas particularidades da ilustração envolvem-se com a animação através de uma dinâmica de movimentação de câmara singular. Os planos acentuam as perspetivas distorcidas e o exagero torna-se um elemento caracterizador do espaço e das personagens.
O trabalho de worldbuilding imersivo e a caracterização do espaço é algo bastante evidente nesta curta. Acima de tudo pelo, já mencionado, papel do contexto e local que rodeia as personagens. Gonzalez projeta, inclusivamente, o seu cenário num software de modelação e animação 3D, ainda que nada seja animado dessa forma. O realizador recorre aos modelos para ganhar uma perspetiva em profundidade do espaço e familiarizar-se com a física daquele universo. Uma atenção que carrega desde tenra idade. “Houve uma altura em que ponderei ir para arquitetura”, conta, “sempre tive mais interesse em desenhar cenários do que personagens, que é algo que só comecei a fazer há relativamente pouco tempo”.
Rumo a Hollywood
A qualidade vertiginosa de “Ice Merchants” elevou a curta à shortlist da 95.ª edição dos Óscares. O projeto, inicialmente pensado como trabalho final de mestrado na Royal College of Art, do Reino Unido, encontra-se, agora, na grande rota dos festivais internacionais e tem vindo a oferecer novas oportunidades e contactos ao jovem realizador. “Tenho feito bons contactos e amigos na área. A animação é um meio relativamente pequeno, portanto, com facilidade acabas por conhecer o meio todo. Mas uma grande surpresa foi o filme ter tido uma aceitação positiva em festivais generalistas. Não estava à espera que isso acontecesse e acabou por abrir algumas portas e contactos com pessoas fora da animação. O filme superou muitas das nossas expectativas, especialmente para mim. Era um projeto para final de curso na Royal College of Arts e tomou proporções que não esperava. Mas, claro, fico feliz que o filme toque as pessoas”.
Existem apenas esboços de novos projetos para o futuro, mas João Gonzalez garante estar desejoso de regressar ao trabalho e iniciar uma nova jornada. “Tenho desenhado no meu diário gráfico, mas não tenho tido muito tempo para trabalhar numa curta. Agora estamos focados na campanha para os Óscares, mas tenho ideias para alguns filmes e feito esboços. Mal tudo isto acabe, na pior ou melhor das hipóteses em Março, quero tirar um mês para me fechar no meio de uma montanha e começar a produção da minha próxima curta. Estou mortinho por voltar a fazê-lo”. Na shortlist para os prémios da célebre academia, encontram-se, ainda, duas outras curtas, também de autoria portuguesa. “O Homem do Lixo”, uma curta de animação de Laura Gonçalves e “O Lobo Solitário”, um thriller em plano-sequência de Filipe Melo.
“Ice Merchants” foi produzido por Bruno Caetano (COLA Animation, Portugal), com co-produção de Michaël Proença (Wild Stream, França) e da Royal College of Art (Reino Unido), distribuído pela Agência da Curta-Metragem e é um projeto apoiado pelo Instituto do Cinema e Audiovisual (ICA).