Vietname. Não-lugar como casa
João Tamura nasceu em Lisboa, nos anos 90. É músico, poeta e fotógrafo. Partiu, em setembro de 2022, numa viagem sem data de regresso ou destino definido. Não-lugar como casa — em referência ao conceito de “não-lugar”, criado pelo antropólogo Marc Augé — é a série de crónicas que documentam essa viagem, numa simbiose entre as suas linguagens prediletas — a prosa e a fotografia analógica.
O outro lado da estrada parece-nos um destino inalcançável. Os obstáculos que se atravessam à nossa frente não cessam ou descansam. A Sara aperta-me a mão e avançamos; as scooters circundam-nos como um rio circunda a rocha que a meio de si se ergue; deixam-nos para trás como o mais organizado dos cardumes ultrapassa um obstáculo no seu caminho. Estes 8 metros deixam-nos entre um ataque de pânico e um ataque de nervos — no entanto, todos sobre estas scooters parecem ter a destreza de Vin Diesel em Velocidade Furiosa 32, desde o jovem ainda sem idade para conduzir, à sexagenária que nos ultrapassa sem capacete na cabeça e de havaianas nos pés.
Este país não é para pedestres e estes passeios são para tudo aquilo que neles couber: são estacionamento para motas e bicicletas, e lugar para bancas que vendem bánh mì (1), cà phê (2), phở (3). Estes passeios, a maioria quebrados pela força e pela teimosia das raízes das árvores, são onde almoçamos e jantamos, sentados em bancos de plástico, demasiado curtos para as nossas pernas. Sobre a mesa encarnada que nos separa, mãos calejadas pousam duas taças de phở, uma garrafa de molho de peixe, uma lima aberta ao meio, rebentos de feijão-mungo, manjericão, e coentro-bravo. “Cảm ơn” (4), dizemos, sem qualquer confiança na nossa fonética, e sorvermos os fumegantes noodles.
A língua vietnamita tem 6 diferentes entoações, muitas vezes difíceis de discernir. De mais fácil distinção são as também variadas entoações das buzinas destas motas: desde o mais comum “estou aqui”, utilizado incessantemente pelos motociclistas, para que a sua presença seja notada pelos outros que com estes partilham as estradas; ao “anda lá que esse sinal já está quase verde”, e ao “sai da frente!”, tantas vezes escutado pelos novatos nas caóticas estradas vietnamitas — eu, portanto. As ruas de Saigão são barulhentas. Quão barulhentas? As artérias principais da metrópole facilmente ultrapassam os 80 decibéis. Os risos das crianças fundem-se com o troar dos tubos de escape, os anúncios à mais fresca e deliciosa bánh mì da cidade medem forças com o relato do Ho Chi Minh City x Binh Duong, e as incessantes e “de-arrancar-os-cabelos” buzinadelas sobressaem a tudo o resto. Quando lado a lado, a Sara não consegue decifrar as minhas palavras:
— Não te ouço, já me dizes.
Demoramos tanto tempo a chegar a uma rua mais silenciosa que me esqueço do que tinha para dizer-lhe. Este barulho é, em parte, explicado pelo contínuo crescimento da cidade: Saigão é o grande hub financeiro do Vietname e, consequentemente, um íman para aqueles que procuram uma nova vida. Para cá rumam licenciados e doutorados que, após concluírem os seus cursos, assinam contrato com uma das muitas empresas baseadas na cidade, e famílias de um Vietname rural, atraídas pelas promessas e miragens da metrópole. Enquanto os primeiros facilmente arrendam um apartamento num dos muitos arranha-céus recentemente erguidos pela Vinhomes (5), os segundos dificilmente encontram um lar na nova cidade. Sob a tutela socialista, todos os cidadãos teriam direito à habitação. No entanto, o estado não consegue acompanhar o acelerado crescimento da urbe e os novos residentes de Saigão vêem-se forçados a erguer as suas próprias casas, usualmente nas orlas dos muitos canais da cidade. Há muito que o governo tenta o realojamento destas pessoas, mas tal processo tem sido moroso, dada a escassez dos fundos públicos. Esta cidade teve vários nomes: Prey Nôkôr, enquanto parte do império Khmer; depois, Saigão e, após o término da guerra americana (6), Ho Chi Minh City, em honra do revolucionário independentista (7). No entanto, muitos dos que aqui nasceram ou que para aqui se mudaram ainda lhe chamam Saigão — Ho Chi Minh City é um nome somente administrativo, utilizado em contextos formais ou profissionais. Saigão é casa para quase 10 milhões de pessoas.
A cidade organiza-se por distritos: 24, no total. O centro da cidade divide-se entre o Distrito 1 e o Distrito 11 — o Distrito 1, o mais central, à la Hunger Games. Apanhamos um autocarro até ao Distrito 8 e saímos sobre a ponte que serve de fronteira com o Distrito 5. Do seu topo, observamos as centenas de casas em ambos os lados do canal. Descemos e, do lado oposto àquele onde nos encontramos, o dia de trabalho chega ao fim: homens abandonam a retroescavadora que repousa sobre o canal, e despejam uma garrafa de água sobre os corpos, numa tentativa de aliviar a violência destes raios de sol. Deste lado, as casas ainda resistem sobre as lamacentas águas. A luz do dia não penetra estas ruas, quase inteiramente cobertas por telhados de chapa. O sol não toca o chão, eternamente húmido. Quando chove, a água inunda os sapatos dos que aqui vivem, ensopa as suas meias, rodeia as suas canelas. Como em muitos lugares deste continente, também aqui a vida privada interceta-se com a pública, e as portas abertas e as luzes ligadas convidam-nos a observar o interior das casas pelas quais passamos: a luz esverdeada de uma televisão — o Vietname vence a Malásia por 2-0; dois homens jogam às cartas, cigarros pendem dos seus lábios; uma família partilha uma refeição, os seus risos unem-se ao som de um antigo rádio. O apertado caminho que percorremos é uma extensão destas casas — é estendal para a roupa que teima em não secar e é lugar para as brincadeiras dos mais novos — e é extensão dos poucos restaurantes do bairro — é cozinha e é copa. Um grupo de homens sorri-nos:
— Hello, hello! Cà phê?
Aceitamos, claro — “never refuse an invitation”, já dizia o Leo (8). Tentamos o diálogo, com o tão precioso como inútil auxílio do Google Translate. Tento perguntar-lhes acerca das demolições e acerca das pessoas forçadas a abandonar as suas casas, mas sei que muitas das minhas questões são incorretamente traduzidas — é como se jogássemos ao Telefone Estragado, se 25% da informação chegar corretamente ao seu destino, dar-me-ei por feliz. Tento perguntar se quereriam sair do bairro, se aceitariam uma casa num lugar diferente. Entre os 75% de indecifráveis palavras do Google Translate, discirno “to a better place”. E assim o espero, e dou-me por feliz.
É Natal. As ruas e as avenidas estão iluminadas e os cafés e os restaurantes têm, à porta, aqueles pais natais que cantam e dançam. “Merry Christmas!” dizem-nos sempre que pagamos por uma chávena de café ou entramos num táxi — não fossem os 36º e os 85% de humidade e esquecer-me-ia que estou no Sudeste Asiático. Gosto do Natal: a noite de 24 de dezembro é uma das raras ocasiões em que pausamos as nossas cada vez mais apressadas vidas e trocamos olhares, abraços e memórias com aqueles que nos viram crescer — e com aqueles que agora vemos crescer. Gosto de chegar a casa da minha avó e sentir o aroma a filhoses e a sonhos acabados de fritar; gosto de ouvir as histórias da minha tia, sobre uns Olivais que já não existem, e sobre como ela e o meu tio se conheceram, há tantas décadas atrás; gosto do barulho em redor da mesa, das conversas que saltam a ordem dos lugares tão cuidadosamente selecionados pela minha avó; e gosto da dificuldade em nos fazermos perceber, tanto o ruído dos talheres e o elevado som do blockbuster de Hollywood demasiadas vezes repetido por um dos quatro principais canais de televisão. Os anos avançam e moldam o Natal: os lugares que o tempo deixou vazios são agora ocupados por risos de primos e sobrinhos para quem esta noite ainda é sobre presentes e embrulhos; a televisão ao fundo da sala aumenta em tamanho, brilho, volume; a mesa estende-se, permitindo que cada vez mais se sentem em seu redor. A véspera de natal em Saigão é distinta daquela a que eu e a Sara estamos habituados: as pessoas invadem as ruas numa celebração que mais se assemelha à passagem de ano no Terreiro do Paço; os jovens ouvem música, as famílias tiram selfies e, apesar do calor, os shoppings são invadidos por milhares de gorros encarnados e camisolas berrantes feitas de lã. Pela primeira vez não direi à minha avó:
— Juro, não consigo comer mais! Olha só, já estou a rebentar;
Não verei, cheio de vergonha alheia, familiares passarem do riso ao choro em menos de 5 minutos, após uma qualquer discussão idiota sobre futebol ou política; não escutarei, após uns quantos copos de tinto, a minha tia a cantar uma canção pimba que desconheço, mas que parece emocioná-la profundamente. Esta noite, pela primeira vez em quatro meses, sinto saudades de casa, de Portugal, do Natal. É cliché, eu sei, mas sinto falta do bacalhau e do peru. Estes noodles, que tanto adoro, que quase diariamente devoro, parecem não ter sabor. Até o frio me parece faltar — loucura, eu sei; eu que tanto me queixo do inverno Lisboeta a desprezar do calor de Saigão… É quase meia-noite e a folia nas avenidas continua.
– Nah, não faz sentido, isto não é Natal. Estão a rebentar foguetes para quê? É em honra do Menino Jesus? — diz-me a Sara.
Concordo e rumamos ao nosso quarto de hotel, naquele escuro beco entre o Distrito 1 e o Distrito 5. É a primeira vez que passamos o natal na companhia somente um do outro. A Sara tem sido a pessoa com quem me partilho e com quem partilho o mundo. Não imagino outrem com quem passar estes dias, estas noites em desconfortáveis camas e sofás, estas intermináveis horas em bancos de autocarro que nunca reclinam o suficiente, ou em salas de espera de aeroportos lotados, ou em terminais que nunca conseguimos pronunciar corretamente. As esperas são menos demoradas a seu lado, as ruas menos ruidosas, a cidade menos caótica. Não me cabe pensar em outrem com quem desafiar a velhice, todos os cabelos cinza, e o vincar das rugas, cada vez mais fundas. Partilhamos as solidões um do outro; acalmamos as nossas ânsias como podemos, o melhor que sabemos. A Sara obriga-me a ser melhor: mais compreensivo, paciente, bondoso. A Sara é a única pessoa com quem passaria uma véspera de natal entre música V-pop, foguetes, noodles do 7-Eleven e maus filmes da Netflix. A Sara é a única pessoa.
O que consegue uma scooter carregar? O seu condutor? O seu condutor, a sua esposa, e os seus dois filhos? O seu condutor e um ar condicionado? O seu condutor e três pinheiros de natal? No Vietname, todas as anteriores opções encontram uma sorridente e afirmativa resposta. E um país? O que consegue um país carregar? O fardo de uma colonização ocidental? O peso de 3 guerras num período de 30 anos? Uma tímida reabertura após dois anos de fronteiras fechadas? No Vietname, todas as anteriores opções anteriores encontram uma sorridente e afirmativa resposta. E em que direção irá o país? Quando o questiono, sobre um banco de plástico curto de mais para as minhas pernas, entre os 75% de indecifráveis palavras do Google Translate, consigo discernir “to an even better place”. E não me parece difícil que assim seja. E dou-me por feliz.
(1) – Bánh mì é um tipo de sanduíche, em pão do tipo baguete, típica do Vietname. Pode ser preenchida por vários tipos de carnes e de vegetais — e, usualmente, pâté;
(2) – O Vietname adora café — ou cà phê. É o segundo maior exportador do mundo de grãos de café — somente atrás do Brasil. Este é servido numa multitude de maneiras: em Hanói, mais curto e mais espesso; em Saigão, longo, com cubos de gelos, bebido através de uma palhinha. Em ambos os lugares, é adoçado com açúcar ou, mais usualmente, com leite condensado. Diferentes tipos de cafés são servidos por todo o país: café com ovo, café com coco, café com iogurte…
(3) – Prato vietnamita — noodles de arroz, servidos num transparente caldo, usualmente acompanhados por diversos vegetais, carne ou tofu, especiarias, ervas aromáticas…
(4) – “Obrigado” em vietnamita;
(5) – A Vinhomes é a maior empresa de construção imobiliária do Vietname — é proprietária de mais de 16000 hectares de terreno em mais de 40 cidades vietnamitas. É proprietária do edifício mais alto do Vietname, o Landmark 81, em Saigão;
(6) – “A Guerra do Vietname”, escutamos em filmes, lemos em livros, estudamos na faculdade… No Vietname, esta é chamada a “Guerra Americana”;
(7) – Ho Chi Minh foi a maior figura da luta independentista do Vietname. Foi uma das mais importantes figuras do século XX e, pós-independência, presidente do Vietname do Norte — quando o país ainda se dividia em dois, Norte e Sul — entre 1945 e 1969,
(8) – Menção à famosa linha de Leonardo DiCaprio no filme A Praia, realizado por Danny Boyle: “So never refuse an invitation, never resist the unfamiliar, never fail to be polite and never outstay the welcome.”