O vazio no conceito de Politicamente Correcto
O dito politicamente correcto anda nas bocas do mundo. De todos os lados surge alguém clamando que é mais uma das suas vítimas, mais um dos silenciados, impossibilitado de partilhar as suas verdadeiras opiniões. Evocam um clima de policiamento da linguagem tão feroz que, ao se protegerem os oprimidos, se oprime os restantes, não mais livres de dizer o que queiram.
À falta de uma definição concreta, o dito politicamente correcto costuma ser descrito como a censura de um certo tipo de linguagem que promova narrativas estereotipadas ou que possa fazer referências a diversas formas de discriminação, tais como o racismo, o sexismo, ou a homofobia. A origem da expressão é, no entanto, discutível. Utilizada anteriormente noutro contexto, surge com o significado actual provavelmente por volta de 1990, nos Estados Unidos da América, quando uma série de publicações norte-americanas de enorme relevo, como o New York Times, a Time, a Newsweek ou o Wall Street Journal, fazem artigos acerca de uma suposta nova intolerância, onde, nas universidades americanas, existiria uma ideologia não-oficial que não toleraria certas opiniões que iam contra as suas, nomeadamente em temas como raça, ecologia, feminismo, cultura, ou até política externa. Um destes artigos, no caso o da New York Magazine, falava, por exemplo, de um professor de História em Harvard, Stephan Thernstrom, que teria sido atacado por estudantes que o classificariam de racista, insultando-o na rua e dentro dos terrenos da faculdade. Numa entrevista posterior ao professor, no entanto, o mesmo dizia nunca ter sido alvo de tais ataques, explicando que a única coisa que tinha acontecido havia sido um editorial, do jornal estudantil Harvard Crimson, criticando a sua decisão de, numa aula, ler excertos de diários de fazendeiros. Terá sido neste contexto, portanto, que, de repente, o dito politicamente correcto passou de ponto de conversa entre os conservadores da academia – que o designavam enquanto programa político que estaria a assumir o controlo das universidades americanas e das instituições culturais – para as bocas da generalidade da população e para projecto político mais profundo. Ora, sendo este um termo utilizado sempre enquanto crítica ou acusação – já que ninguém se descreve como politicamente correcto – o alegado projecto político nunca passou de um conceito vazio, sempre imposto por terceiros, tanto que só fala no politicamente correcto quem dele se queixa, quase sempre aqueles que expressam posições racistas ou reacionárias, que, não querendo ser rotulados dessa forma, rotulam como politicamente correctos aqueles que os acusam. Queixando-se que os outros estão a criar e a forçar os seus códigos de linguagem, forçam, ao mesmo tempo, os códigos de linguagem próprios.
No fundo, o dito politicamente correcto é apenas uma classificação para algo ou alguém que segue as normas e as leis estabelecidas pelas instituições oficiais, não sendo, portanto, uma doutrina geral, mas sim o conjunto de normas políticas estabelecidas por quem exerce o poder político (ou, e essa seria outra questão, quem estabelece ou aplica a mentalidade vigente na sociedade), ou então aquilo que é socialmente aceitável de ser feito ou dito. As queixas são, portanto, provocadas por uma alteração nestas normas e nos padrões morais e éticos da sociedade em questão, neste caso a generalidade da sociedade dita ocidental. Dizer que o politicamente correcto está a levar à censura de determinados tipos de opiniões não é mais do que culpar a moral e a ética vigente – que, obviamente, varia também de quadrante social para quadrante social. Mudam-se as normas e os valores e, naturalmente, quem não concorda com os “novos” valores contesta-os.
A história está feita de alterações nos códigos de conduta pelos quais nos regemos. Se antigamente seria aceitável ou usual apelidar alguém de retardado ou mongoloide, hoje em dia já não é considerado como tal, e sentir-se-á desconforto ou até desprezo perante tal situação. Da mesma forma, se ainda muita gente em Portugal resiste a condenar quem é racista face a negros ou ciganos, já ninguém considera aceitável, tirando uma pequeníssima minoria proto-fascista, ser-se anti-semita.
No entanto, se ao mesmo tempo que são as normas e os valores das instituições e da sociedade que vão mudando, quem se queixa do dito politicamente correcto são, por norma, os poderes estabelecidos, à vontade no seu status quo, habituados a saber quais as consequências do que dizem. Com a alteração dos valores vigentes, as consequências mudam, e aquilo que antes não trazia qualquer consequência passa a ser alvo de indignação. O que o dito clima do politicamente correcto trará, então, é um prestar de contas pelo que se diz, um assumir das responsabilidades daquilo que é dito, mesmo que o seja de forma leviana. O mesmo, portanto, que os códigos sociais vigentes sempre exerceram, desde os tabus relacionados com o sexo aos próprios tabus políticos. Ora, não sendo mais do que aquilo que essas normas sociais sempre foram, o politicamente correcto não passa de um conceito vazio. Mas, protegendo-se atrás da sua culpabilização do politicamente correcto, quando confrontados com as consequências do que dizem, com as ofensas que perpetuam, os queixosos sentem-se silenciados, incapazes de expressar os seus pontos, ou de debater certos problemas sociais.
Acaba por ser nesta medida que o politicamente correcto teima em ser relacionado com a também afamada liberdade de expressão, estando-lhe associado na medida em que os detratores do mesmo referem o estigma em relação a si próprios como limite da sua suposta liberdade de expressão para dizer tudo o que lhes aprouver. Acaba por ser hilariante, no entanto, que, ao mesmo tempo, a grande maioria de pessoas que afirma estar a ser silenciada tenha um espaço próprio numa publicação de elevada visibilidade, espalhando o seu silenciamento em directo na televisão ou no jornal de maior tiragem. Aliás, num momento em que as escolhas editoriais se fazem com base no impacto, positivo ou negativo, em que o espaço público se rege pelo choque e pelo sensacional, é bastante mais provável que estejam a ser silenciados assuntos de relevo (e considerados “politicamente correctos”) pelo seu pouco impacto mediático. Com o advento da internet e das redes sociais acaba por ser até praticamente impossível argumentar que o discurso é hoje mais inibido que antes das mesmas terem surgido, e para tal basta consultar, por exemplo, as tão afamadas caixas de comentários de jornais online.
O nosso discurso é formado por inúmeros tabus, sempre foi, que desencorajam a expressão de certas ideias através de mecanismos de vergonha, e, se há novos que surgem, muitos mais desapareceram nos últimos anos. Notar-se-á mais, talvez, um “ofendidismo” generalizado, e esse não poderá nunca ser uma bússola de avaliação para os nossos comportamentos, mas, mesmo que se argumente que quem usa expressões apelidadas de politicamente incorrectas não tem qualquer intenção de detrimento ou de preconceito, a verdade é que as consequências do que dizemos vão muito além das nossas intenções, e importa tê-las em conta. Da mesma forma, há que condenar socialmente as pessoas cujas acções ou palavras achamos poluentes, indignarmo-nos quando alguém diz algo que julgamos indigno, sendo perfeitamente natural que alguém acabe a condenar publicamente as declarações de outro que afirme o contrário das suas opiniões, e tal nada tem que ver com respeito de crenças, sempre foi assim que foi feita a política em liberdade. Não é por essa pessoa ter direito a falar que não deve ser confrontada com as consequências do que diz. Porque os defensores da liberdade de expressão que dizem defender os direitos mesmo daqueles que dizem odiar (a famosa expressão falsamente atribuída a Voltaire “Posso não concordar com o que diz, mas defenderei até à morte o seu direito de dizê-lo”) são aqueles que nunca se sentiram ameaçados pelo discurso dos que dizem odiar. Não é que não exista gente a ofender-se por razões absurdas, mas é francamente fácil acusar os outros de se ofenderem com tudo e com nada quando estamos, nós próprios, numa posição de privilégio face a elas.
Não é que não existam assuntos a ser silenciados, discussões impossibilitadas de ser tidas devido aos tabus existentes na sociedade – e, portanto, nas pessoas que a formam – mas tal nada tem que ver com o politicamente correcto. Importa quebrar esses tabus, promover discussões sobre esses assuntos, mas a teimosia face a culpar o politicamente correcto é também um dos factores a impedir essa discussão de ser feita.
Outro dos problemas advém da formação de juízos precipitados, a exposição do argumento ainda não concluída, mas também isso não está relacionado com o politicamente correcto, já que o que não falta são exemplos na sociedade de pessoas que já estão pré-dispostas para julgar o que é dito, ou com base na pessoa que as expressa, ou com base no género de argumentos ouvidos que tenham algumas palavras em comum com o que é expresso nesse momento. Há uma falta de vontade de discutir assuntos e, essencialmente, uma falta de vontade de os discutir para além da sua mais básica superfície, somos incapazes de mergulhar a fundo em algo e procurar as suas causas, consequências, ou as formas como moldam o pensamento actual. Se o clima se transformou num de polarização tremenda, clamando pelo retirar de espaço aos que dizem coisas com as quais não concordamos, ou com a execução em praça pública de alguém pelo que disse, tal deve-se também ao não sermos capazes de discutir algo em profundidade, mais do que a quaisquer tabus sociais ou ao dito politicamente correcto. Tal é válido para todos os quadrantes e ideologias, está muitíssimo longe de ser generalizado tanto à direita como à esquerda; opta-se pelos chavões, pelos caminhos fáceis. Deixar a acusação pelo politicamente correcto é igualmente causa e consequência, síndrome deste problema de falta de capacidade ou vontade de discutir além do superficial.
O argumento do politicamente correcto torna-se, portanto, numa barreira que evita discutir o verdadeiro conteúdo em causa, o causador da discussão, sendo, assim um engodo, uma distração, para o que realmente interessa. Ao dizer que se está a ser alvo do excessivo politicamente correcto, cria-se uma falsa discussão que anula aquela que deveria estar a existir no seu lugar, e, assim sim, silencia-se a discussão.
Ainda que muitos dos críticos e dos alarmistas face ao excessivo politicamente correcto vejam em Donald Trump um antípoda de si próprios, o agora presidende dos Estados Unidos da América é o exemplo vivo de semelhante táctica de fugir ao cerne da questão, e o culminar desta posição social. Em Junho de 2015, por exemplo, quando, por ter chamado aos mexicanos “violadores”, a NBC anunciou um término de relações entre ambos, Trump disse apenas “A NBC é fraca, e tal como todos os outros está apenas a tentar ser politicamente correcta.” Ou seja, em vez de debater o facto de ter chamado aos mexicanos violadores, desviou a questão, colocando o foco na NBC. Ao responder aos críticos, acusando-os de estarem a ser politicamente correctos, Trump tenta demarcar-se inteiramente do domínio da política. Algo político é algo acerca do qual as pessoas podem discordar umas das outras. Ao usar o adjectivo como algo pejorativo, Trump coloca-se no domínio das coisas que são simplesmente senso comum, verdades tão óbvias que não são discutíveis, e sugere que aqueles que acusa de serem politicamente correctos estão a agir inteiramente de má-fé, e isso sim é perigoso.
O facto de alguém como Trump ter chegado à Presidência dos Estados Unidos da América é, portanto, inseparável da questão da crítica ao politicamente correcto e da sua prevalência no espaço público. A existência de Trump enquanto homem político é apenas concebível enquanto lhe é permitido envergar as vestes de arauto da verdade, e tal só se torna possível quando se acusa alguém de estar a impedir essa verdade de ser confrontada. Importa levar a discussão mais longe e perceber que, no fundo, culpar o politicamente correcto pelo silêncio é não ser capaz de ver para além da superfície. Não interessa criticar ou defender o politicamente correcto, mas sim constatar que dentro dele nada existe; que, sendo um conceito indefinido, agregador de tudo e mais alguma coisa, não é mais que vazio.