A voz passiva nas notícias
Uma desresponsabilização inconsciente do agressor.
Os últimos meses não têm sido fáceis para vítimas de violência sexual. Desde julgamentos transformados em reality TV, que serviram de entretenimento e justificação para milhares de pessoas gozarem com os relatos de uma vítima de violência sexual, ao agora novo (que não é novo) escândalo de abusos sexuais na Igreja Católica Portuguesa — 4.815 casos nos últimos 72 anos trazidos à luz pelo relatório da Comissão Independente para o Estudo dos Abusos Sexuais de Crianças na Igreja Católica. Com tudo isto, tenho prestado ainda mais atenção às notícias.
Não é de agora que saem notícias nos principais jornais do país sobre casos de Violência Contra as Mulheres. E olhos menos atentos podem não ver um padrão aí, mas ele está lá. No dia 8 de fevereiro saiu uma notícia no Diário de Notícias; no título podia ler-se “Mulher morre na sequência de agressões do marido em Lisboa”. No mesmo dia, sobre o mesmo caso, sai uma outra notícia no Jornal de Notícias em que se lê “Mulher morre após ser violentamente agredida pelo marido na Ameixoeira”. A 5 de outubro de 2022, novamente no Jornal de Notícias, sai uma notícia sobre o assassinato de uma mulher pelo ex-companheiro. O título? “Mulher morta em frente aos filhos menores”. Na RTP Notícias, a 19 de setembro desse ano: “Odivelas. Mulher assassinada pelo companheiro no meio da rua”. E, claro, podia continuar; não requer assim tanta pesquisa.
Fui aluna de Línguas e a nossa fascina-me desde que me lembro, em especial a forma como as mensagens podem ser transmitidas e interpretadas de formas diferentes, de acordo com a vontade do emissor e do recetor, respetivamente.
Então e qual é o padrão nas ditas notícias? O uso da voz passiva nas headlines — ou, quando não é a passiva, é a voz ativa usada no mesmo sentido, com o particípio passado ou com a ênfase na vítima. Acredito não ser necessário esclarecer como funciona a voz passiva, mas o objetivo é, geralmente, colocar o foco da ação no objeto, transformando-o, assim, no sujeito da mesma. Ou seja (e usando um dos casos acima mencionados): em vez de escrever “Homem assassina companheira no meio da rua” — colocando o sujeito (e foco) da ação no perpetrador, escreve-se “Mulher assassinada pelo companheiro no meio da rua” — colocando o sujeito (e, novamente, o foco) da ação na vítima. No caso da voz ativa usada da mesma maneira que a passiva, percebemos que o foco é a vítima que morre, não o agressor que mata.
Isto não afetaria em nada o leitor, não fosse a linguagem usada fundamental na perceção que temos dos acontecimentos que nos rodeiam, em especial quando o assunto envolve violência, uma vítima e um agressor. Algo a notar no assunto é a forma como na voz passiva, o autor das ações é passível de ser removido da frase; assim, temos “Mulher assassinada em frente aos filhos menores”. Por quem? Aí está: o complemento agente da passiva (que seria “pelo ex-companheiro”) não está presente na headline, e, tendo em conta que as notícias online dificilmente são lidas na íntegra, a ideia de um autor é varrida de cena.
O que não faltam são estudos, notícias, relatórios e posts nas redes sociais sobre como as mulheres são a maioria das vítimas de violência sexual e doméstica. E não quero ser mal interpretada; fico feliz que existam. No entanto, só recentemente se começou a olhar “com olhos de ver” para o outro lado da questão: quem constitui a maioria dos agressores sexuais e domésticos?
Já em 1995, Henley, Miller e Beazley concluíam que notícias sobre violência sexual em jornais são frequentemente escritas na voz passiva e sem agente (autor da ação) e que, quando assim é, a atitude perante as vítimas era mais negativa, com um menosprezo do sofrimento que lhes foi causado e uma atenuação da responsabilidade do agressor; estas consequências podiam derivar, em parte, do foco no papel que o dito “objeto” tem em frases passivas — objeto esse que, aí, toma o lugar de sujeito.
Acho importante afirmar que, tal como as autoras, não acredito que em todos os casos isto seja intencional; a forma como escrevemos e noticiamos eventos vem, em grande parte, do ambiente que nos rodeia e dos aspetos culturais que, querendo ou não, moldam a nossa perceção do mundo. A cultura da violação — resultante da normalização e quase banalização da violência sexual em todo o lado (de videoclips a videojogos, filmes, séries e toda a cultura pop em geral) — molda o nosso pensamento, qualquer que seja o nosso género. Mulheres ou pessoas a quem foi atribuído o género feminino à nascença têm, inclusive, grandes níveis de misoginia internalizada, que devem ser desconstruídos e nunca ignorados. Assim sendo, enquanto lutamos pelo fim da violência de género como um todo, acredito ser fundamental mudarmos coisas pequenas que, indiretamente, afetam a forma como vemos os acontecimentos, e a linguagem é uma das mais significativas. A desresponsabilização de género e a falta de atenção à forma como passamos as mensagens e como serão inconscientemente interpretadas pelo público devem ser tidas em maior consideração quando editores reveem notícias e artigos sobre casos que demonstram, efetivamente, padrões de género — que quando ignorados ou diminuídos podem ser, eventualmente, fatais.
Crónica de Joana Fernandes.
Licenciada em Línguas e Relações Empresariais pela Universidade de Aveiro, ativista feminista e pelos sobreviventes de violência sexual.
Para denunciar ou pedir apoio em caso de violação, pode contactar os seguintes números telefónicos:
112 (Número Europeu de Emergência)
114 (Linha Nacional de Emergência Social; caso não seja seguro regressar a casa e não tenha onde ficar)
116 006 (Linha de Apoio à Vítima)
910846589 (Linha de apoio da Associação Quebrar o Silêncio, que presta apoio especializado a homens sobreviventes de violência e abuso sexual)
Pode ainda dirigir-se à esquadra da PSP, posto da GNR ou piquete da PJ mais próximo. É recomendada a procura de ajuda psicológica ou psiquiátrica.